quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Aquecimento da economia exige toda a cautela

O Globo

PIB deve ser celebrado, mas, sem deter expansão da dívida pública, crescimento será insustentável

Há exatos dois anos, em dezembro de 2022, os analistas previam que a economia brasileira cresceria 0,75% em 2023 e 1,71% em 2024. Nesta terça-feira, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o número revisado para o Produto Interno Bruto (PIB) do ano passado e os dados para o terceiro trimestre deste ano. O resultado oficial: crescimento de 3,2% em 2023 e de 3,1% nos 12 meses terminados em setembro. Mesmo com a esperada desaceleração, poucos duvidam de que o PIB ficará acima de 3% em 2024. O desemprego caiu para 6,2% no trimestre encerrado em outubro, menor índice da série histórica iniciada em 2012. A superação das expectativas deve ser motivo de celebração. Mas o aquecimento da economia também exige extrema cautela.

O principal ponto de atenção é a situação fiscal, em flagrante deterioração. Pelos números divulgados ontem pelo Tesouro, o governo central registrou R$ 64,4 bilhões de déficit primário entre janeiro e outubro. No acumulado de 12 meses até outubro, foram R$ 225,3 bilhões, ou 1,9% do PIB. Apesar de o arcabouço fiscal tolerar déficit de até R$ 28,8 bilhões (0,25% do PIB) em 2024, a previsão do próprio governo é passar de R$ 64 bilhões no fim do ano, em razão das despesas excluídas da meta (“gastos parafiscais”). O déficit zero proclamado no anúncio do arcabouço se revelou uma quimera. Pela estimativa da Instituição Fiscal Independente (IFI), a dívida pública chegará a 84,5% em 2026, ante 71,7% em 2022. E não há perspectiva de que venha a cair. Sem cuidar de estabilizar a trajetória de endividamento, a ressaca do crescimento promete ser feia.

O pacote de controle de despesas anunciado na semana passada tinha como objetivo diminuir a sensação de risco fiscal, mas surtiu efeito oposto. O dólar continua a subir, e a pressão inflacionária só faz crescer. Isso aumenta a responsabilidade do Banco Central (BC). Em evento nesta semana, Gabriel Galípolo, atual diretor de Política Monetária e próximo presidente do BC, foi categórico ao descartar a sugestão de intervenção cambial feita por caciques petistas. Também tem falado em “reancorar” as expectativas inflacionárias. Com as previsões de inflação em alta e acima das metas do BC, isso se traduz na manutenção da taxa de juros em patamares altos. Crédito mais caro significa expansão mais lenta da economia.

O Brasil é incapaz de se aproximar da renda dos países ricos há décadas por ficar preso a uma dança improdutiva: dá alguns passos para a frente e outros tantos para trás. O modelo de crescimento adotado pelo governo, baseado no consumo, já revelou no passado ter fôlego curto. Agora, os dados do IBGE demonstram que o problema se repete. A taxa de investimento (indicadora da capacidade de crescimento futuro) se mantém abaixo de 18%, ante uma necessidade da ordem de 25%. Enquanto isso, houve queda preocupante no nível de poupança desde 2020 — de 17,2% para 14,9%. Isso significa menos capital disponível para investir e para a economia crescer com sustentação. De nada adianta um período de crescimento econômico acelerado se ele for revertido logo à frente — daí a insistência em medidas para assegurar expansão sustentada ao longo do tempo. Isso depende, acima de tudo, de controlar o endividamento público.

Supremo estabelece critério razoável para liberar emendas parlamentares

O Globo

Decisão apoiada pelo plenário tenta disciplinar uso dos recursos e exige o mínimo — transparência

Fez bem o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), em liberar o pagamento de emendas parlamentares, suspenso pela Corte em agosto até que o Congresso elaborasse regras de transparência, rastreabilidade e eficiência para aplicação desses recursos. Foi sensata também a decisão de estabelecer novos critérios de transparência que não estavam previstos no Projeto de Lei aprovado em novembro, insatisfatório para atender às exigências do Judiciário.

Embora o texto aprovado há duas semanas no Congresso tenha sido costurado pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira, do Senado, Rodrigo Pacheco, pelo governo federal e pelo próprio STF, ele ficara devendo no que diz respeito à questão central: a transparência. Por isso não são exageradas as exigências feitas por Dino em sua decisão, chancelada pela maioria do plenário.

A maior virtude é pôr fim ao segredo, frequentemente usado para ocultar interesses por trás das emendas. Além das exigências já impostas pelo projeto aprovado, as verbas das emendas de comissão e dos restos a pagar das antigas emendas do relator só poderão ser executadas se o nome do parlamentar solicitante for identificado no Portal da Transparência.

A decisão ainda tenta corrigir uma das principais distorções do mecanismo de emendas parlamentares: o uso para projetos paroquiais, em detrimento de políticas públicas consistentes. As emendas da Saúde terão de seguir orientações e critérios técnicos estabelecidos pelo Ministério da Saúde e por comissões com gestores estaduais e municipais. Nas “emendas Pix”, que enviavam recursos ao caixa de estados e municípios sem indicar o destino do dinheiro, o pagamento ficará condicionado à apresentação prévia de plano de trabalho, contendo objeto e prazo para a obra, sendo necessária aprovação pelo governo federal. Mesmo que a verba já tenha sido enviada, será preciso apresentá-lo em 60 dias. Os recursos terão de ser empregados preferencialmente em obras inacabadas.

Não faz sentido a insatisfação de parlamentares com as novas normas de transparência estabelecidas pelo STF. É verdade que a interferência do Judiciário em questões do Legislativo é sempre um ponto sensível e que a independência dos Poderes precisa ser respeitada. Mas o Supremo não foi além do que já havia decidido ao suspender o pagamento das emendas em agosto.

É um despropósito destinar em torno de R$ 50 bilhões a estados e municípios de forma obscura, sem que se saiba quem manda quanto para onde nem para quê. Além de usurpar o poder do governo eleito para planejar a aplicação do dinheiro onde é mais necessário, essa prática favorece o uso político e os casos de corrupção. Não dá para prever se a decisão do Supremo será eficaz ao disciplinar a aplicação dos recursos, para que não sejam pulverizados em obras e projetos supérfluos. Mas pelo menos impõe o mínimo: transparência.

PIB cresce, mas pode desacelerar à força

Valor Econômico

A economia exibe um fôlego como não se via desde o início da década passada, mas ao que tudo indica, essa performance não é sustentável

A economia brasileira teve bom crescimento no terceiro trimestre, de 0,9% sobre o trimestre anterior, e a desaceleração esperada para o período não veio - deve vir agora, porque na ponta há alguma perda de fôlego da atividade. Os números do passado são vigorosos: em um ano, desde o terceiro trimestre de 2023, o PIB cresceu 4%, e 3,1% nos quatro trimestres encerrados em setembro em relação aos quatro anteriores. O consumo das famílias deu um salto de 5,5% em 12 meses, e a formação bruta de capital fixo (investimentos), deu outro maior ainda, de 10,8%. O IBGE recalculou para cima o PIB de 2023, de 2,9% para 3,2%. Na revisão, realçou um dos motivos da expansão, o forte impulso dos gastos públicos. O consumo do governo aumentou de 1,7% para 3,8%, mais em linha com despesas adicionais de R$ 165 bilhões da PEC da Transição.

No ano, a economia cresceu 3,3%, com um carrego estatístico de 3% - resultado final se no último trimestre a expansão for zero. Em praticamente todas as séries, seja na do acumulado ao longo do ano, a da comparação com o mesmo trimestre de 2023 e a dos quatro trimestres sobre igual período anterior, o PIB na verdade acelerou. Os sinais de arrefecimento, que não são agudos, ocorrem quando se considera o resultado atual com o do trimestre anterior. A economia evoluiu 1,4% então e 0,9% agora. O avanço do consumo das famílias, com forte número no primeiro trimestre (2,5%), reduziu-se a 1,5%. O consumo do governo, apesar da revisão para cima de 2023, que havia recuado 0,3% no trimestre anterior, subiu para 0,8%. A formação bruta de capital fixo caiu de 2,2% para 2,1%.

Considerada a oferta, os serviços, que somam 67,8% do PIB, e a indústria foram o principal fator de crescimento (0,9% e 0,6%). Informação e comunicação e outras atividades de serviços, diretamente relacionadas à evolução dos salários e do emprego, foram os segmentos que mais cresceram no trimestre. A construção, que vinha bem, recuou 1,7%. Na evolução anual, até o terceiro trimestre, o crescimento dos serviços é robusto. Informática e outros serviços avançaram 7,8% e 6,4%, respectivamente. A indústria ficou abaixo da expectativa dos analistas. Em um ano, cresceu 3,6% e, no trimestre, 0,6%.

Com o desempenho atual, o Brasil fechará três anos com crescimento acima de 3%, algo que não ocorre desde o triênio 2006-2008. E se a formação bruta de capital fixo mantivesse o crescimento anual de 10,8% até o último trimestre, seria a maior taxa desde 2010. Ao lado da menor taxa de desemprego da série histórica, do crescimento significativo da massa salarial e dos ganhos reais dos salários, a economia exibe um fôlego como não se via desde o início da década passada.

Ao que tudo indica, porém, essa performance não é sustentável. Há um debate inconcluso sobre se o Brasil tem capacidade para crescer de forma sustentada acima de 2,5%, mas a maioria dos economistas se inclina por uma resposta negativa. Há o reconhecimento de que as reformas já realizadas abriram espaço a um potencial maior de expansão, que, no entanto, não seria tão significativa. A prova prática da teoria seria, no entanto, o prosaico comportamento dos preços. A inflação, e não apenas as expectativas, está se distanciando da meta e ultrapassou seu teto, de 4,77% (IPCA-15) em novembro. Para além da polêmica de se a meta de 3% é ou não factível, o IPCA está subindo pelo aquecimento da economia. Há fatores externos influindo, como a nova disparada do dólar, mas ela ainda não se manifestou plenamente nos preços, o que ocorrerá se a moeda americana mudar para o patamar de R$ 6.

Outro indicador de baixa sustentabilidade do crescimento e do aumento dos gastos fiscais pode ser visto pelo aumento das necessidades de financiamento (indica um déficit que terá de ser financiado por poupança externa), que cresceram de R$ 46,7 bilhões nos três trimestres de 2023 para R$ 181,6 bilhões agora. Além disso, há maior distanciamento entre a taxa de poupança da economia e a de investimentos. Hoje os investimentos somam 17,6% do PIB, ante 16,4% do trimestre anterior, ainda distantes dos 20%-22% registrados em alguns anos da década passada. A poupança para financiá-los, com a despoupança do aumento dos gastos do governo, caiu no período de 15,4% para 14,9%, a menor em 4 anos.

Por esse motivo, o déficit em transações correntes vem subindo nos últimos meses. Nos 12 meses encerrados em outubro ele somou US$ 49,2 bilhões, ante US$ 26,3 bilhões em outubro de 2023 no mesmo intervalo de tempo. Boa parte do déficit se deve ao menor ritmo das exportações e a um muito maior das importações, dado o aquecimento da economia. O saldo externo de bens e serviços declinou R$ 72,6 bilhões nos 12 meses findos no terceiro trimestre de 2024.

O governo não tem demonstrado interesse em fazer o ajuste fiscal necessário, e o Banco Central, diante da inflação em alta, aumentará uma carga de juros já muito forte. A taxa real, medida pelos juros futuros de um ano e mediana do IPCA, já ultrapassou 9% no último dia de novembro. Isso significa que a economia, que poderia crescer em ritmo pouco menor e seguro, terá de desacelerar à força pelo aumento do custo do dinheiro, com mais inflação no meio do caminho.

Supremo não deveria incentivar censura na internet

Folha de S. Paulo

Julgamento do Marco Civil tende a invadir seara do Congresso, em novo passo para cercear liberdade de expressão no país

O Supremo Tribunal Federal prepara-se para mais uma invasão das competências do Congresso Nacional. Desta vez o alvo específico são dispositivos do Marco Civil da Internet, mas a mira geral aponta para a liberdade de expressão.

Consta da pauta desta quarta-feira (4) da corte a sequência do julgamento de ações que questionam fundamentalmente o artigo 19 da lei, promulgada em 2014, que estabeleceu as balizas para o funcionamento da rede mundial de computadores no Brasil.

O trecho em discussão do diploma assevera que provedores do serviço só poderão ser responsabilizados civilmente por conteúdo gerado por terceiros se descumprirem ordem judicial para tornar indisponível tal conteúdo.

Não há problema com esse comando se ele for avaliado pelo crivo clássico do Estado democrático de Direito. Proibir alguém de se expressar configura sanção tão drástica a um direito fundamental que ela deveria ser exercida, ainda assim em casos excepcionalíssimos, apenas pela caneta de uma autoridade do Judiciário.

O artigo 19 do Marco Civil nem precisaria disso, mas toma o cuidado de deixar explícito o seu propósito nas palavras introdutórias. Ele está na lei com "o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura".

O espírito do tempo, no entanto, alterou esse entendimento inclusive no tribunal constitucional brasileiro, que num passado não tão remoto se portava como bastião da livre expressão no país.

Não mais. O ministro relator de uma das ações, Dias Toffoli, já indicou que ampliará os casos de responsabilização de provedores, pois segundo ele o sistema de punição deveria se ajustar ao modelo atual das redes, que incentivaria a difusão de inverdades e conteúdos odiosos e criminosos.

Será uma surpresa positiva se a maioria dos integrantes do Supremo contrariar a predisposição de Toffoli de impulsionar a autocensura nas empresas provedoras. A própria iniciativa do presidente Luís Roberto Barroso de colocar em pauta o julgamento demonstra a inclinação por dar mais um passo na direção da limitação do direito à expressão.

Os ministros pelo visto se cansaram de esperar que o Congresso Nacional, ao qual ainda cabe a função de legislar pela Constituição, decida sobre um projeto que trata desse assunto.

Então, ao mau hábito recente de interferir, por vias ortodoxas e heterodoxas, nas prerrogativas de expressão dos cidadãos, os supremos magistrados somaram um outro costume pernicioso, que têm adotado com frequência —o de meter-se em questões típicas de um outro Poder.

A saliência da cúpula do Judiciário brasileiro conota uma leitura equivocada da política. Há quase dois anos não subsiste mais a ameaça constante de um presidente da República autoritário, irresponsável e adversário da Carta de 1988. Os tempos são de normalidade institucional absoluta, e o Supremo já deveria ter-se recolhido a seu papel estrito.

O PIB perde a corrida para a dívida pública

Folha de S. Paulo

Mesmo com crescimento econômico acima do esperado, deterioração do Orçamento sob Lula pressiona dólar, inflação e juros

Os números do Produto Interno Bruto, indicador mais completo da atividade econômica no país, são conhecidos com uma defasagem de cerca de dois meses —nesta terça-feira (2), soube-se que o PIB do terceiro trimestre deste 2024 mostrou outro bom resultado, alta de 0,9% ante o trimestre anterior. Muita coisa aconteceu desde o final de setembro, porém.

A cotação do dólar, que rondava já elevados R$ 5,45, hoje está acima de 6,05; a mediana das expectativas de inflação para o próximo ano subiu de 3,97% para 4,4%, distanciando-se da meta de 3% perseguida pelo Banco Central; a taxa básica de juros, não por acaso, foi elevada de 10,75% para 11,25% anuais, e já se imagina que ela possa ultrapassar os 14,5% em questão de meses.

São mudanças que obviamente conspiram contra a permanência do crescimento econômico, por mais que os efeitos das condições financeiras não se manifestem de imediato em indústria, serviços, agropecuária, consumo das famílias e investimentos.

Pior, o problema que motivou a deterioração está longe de ser sanado —a percepção geral de que o ritmo de aumento das despesas públicas não é sustentável, e o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não está disposto a tomar as providências necessárias para uma correção de rota.

Em tal cenário, a perda de confiança nos títulos da dívida federal leva investidores a procurarem segurança na moeda americana, cuja cotação sobe e encarece produtos e serviços. A inflação também sofre a pressão do consumo impulsionado pela injeção de dinheiro do Tesouro.

Resta ao BC elevar os juros para dificultar o crédito, esfriar a economia e evitar um descontrole de preços. Ao fazê-lo, entretanto, piora ainda mais a situação orçamentária do Estado.

No mundo dos sonhos dos defensores do gasto público como indutor da economia, a prosperidade resultante da expansão fiscal geraria mais receita tributária e equilibraria as contas do governo —e a dívida pública cresceria em ritmo inferior ao do PIB.

Claramente, não é o que se observa. Mesmo com a expansão da atividade bem acima das expectativas, o endividamento governamental saltou do equivalente a 71,68% do produto para 78,64% em menos de dois anos do terceiro mandato de Lula. Se nada for feito, calcula-se que haverá alta contínua até o final da década.

Trata-se de corrida em que a vitória é impossível nas atuais circunstâncias. Quanto mais tempo se levar para fazer os ajustes inescapáveis no Orçamento público, mais dolorosos eles serão.

 Esperteza demais come o dono

O Estado de S. Paulo

O Congresso bem que tentou fazer o País de tolo ao aprovar uma lei que nem de longe resolve a falta de transparência na distribuição de emendas, mas o STF freou a malandragem

Em meados de agosto deste ano, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), provocou uma hecatombe em Brasília ao suspender o pagamento das emendas parlamentares até que o Congresso e o governo do presidente Lula da Silva dessem transparência aos critérios de distribuição dos bilhões de reais sob essa rubrica orçamentária. Desde então, o Legislativo, o Executivo e, em boa medida, o próprio STF se lançaram em uma desabalada corrida para encontrar meios de fazer a dinheirama voltar a circular pelos gabinetes de deputados e senadores.

O resultado desse tour de force, como se sabe, foi a Lei Complementar (LC) 210, aprovada pelo Congresso e sancionada sem vetos pelo presidente da República no dia 26 de novembro. Supostamente, a LC 210 deveria prover os mecanismos de transparência exigidos por Dino em sua decisão liminar, que nada mais eram do que os requisitos já fixados pela própria Constituição. Até certo ponto, houve avanços, até porque seria impossível algo ser pior do que o breu absoluto que prevalecia na distribuição das emendas até então. Mas, malandramente, os gestores do “orçamento secreto” no Congresso deram um jeito de mudar as coisas na superfície para, no fundo, manter o controle sobre bilhões de reais em emendas ao abrigo do escrutínio público, mesmo com o advento do novo diploma legal.

Na terça-feira passada, Dino restabeleceu o pagamento das emendas, o que era esperado pelo Congresso e pelo governo federal desde a sanção da referida lei complementar. Porém, a decisão de Dino, referendada por sete de seus pares no STF em votação pelo plenário virtual no mesmo dia, decerto decepcionou os que pensaram ter feito o País e o STF de tolos, como ficou claro pela miríade de ressalvas feitas pelo ministro para que os recursos destinados às emendas, enfim, voltem a ser liberados. Como dizia Tancredo Neves, “a esperteza, quando é muita, come o dono”.

Sem verbalizar essa conclusão, Dino, na prática, disse ao Congresso e ao Palácio do Planalto que a LC 210 se revelou uma lei ruim, que não presta para dar à sociedade o devido conhecimento sobre o que seus representantes eleitos fazem com bilhões de reais em recursos públicos. Mais especificamente, R$ 186,3 bilhões apenas no período entre 2019 e 2024, além de inacreditáveis R$ 50,5 bilhões previstos no Orçamento da União de 2025 à disposição dos senhores parlamentares.

Está-se diante de uma obscena distorção institucional brasileira, que a LC 210 nem remotamente resolveu, muito ao contrário. Como bem enfatizou Dino, existem países presidencialistas, parlamentaristas, semipresidencialistas “e o Brasil, com um sistema de governo absolutamente singular no concerto das nações”. É como se o “orçamento secreto” tivesse criado um poder paralelo no País – à margem de quaisquer escrutínios republicanos –, exercido pela cúpula do Congresso, em concurso com os caciques partidários, para se assenhorear de um quinhão do Orçamento da União que só faz crescer, anomalia sem paralelo no mundo democrático.

Seria ingênuo esperar que da concertação de interesses entre o Congresso e o governo federal em torno da liberação das emendas adviesse uma lei capaz de moralizar essa orgia orçamentária que tomou conta do País. Mas o que se viu na aprovação da LC 210 foi além, uma tentativa canhestra de fingir que tudo mudaria na gestão das emendas parlamentares para, no fundo, manter tudo rigorosamente como sempre foi desde que o Congresso passou a se sentir soberano na disposição desses recursos bilionários.

Dino e seus pares no STF julgaram que a opacidade na gestão das emendas viola a Constituição, no que estão certos. Pode-se questionar, contudo, se é papel do STF “melhorar” uma lei que seguiu o trâmite legislativo regular, fixando critérios de transparência para a liberação de recursos que, por mais justos que sejam, não foram deliberados pelos congressistas. O fato é que o próprio Congresso fez letra morta da Constituição ao usar e abusar do direito de apresentar emendas ao Orçamento da União como se não devesse satisfação a ninguém.

Biden se iguala a Trump

O Estado de S. Paulo

Ao usar seu poder presidencial para livrar seu filho Hunter da Justiça, o presidente rebaixa a democracia americana, exatamente o que os democratas acusam Trump de fazer

O Partido Democrata considera Donald Trump uma ameaça à democracia. Essa alegação está solidamente ancorada, entre outras coisas, na recalcitrância do republicano em aceitar sua derrota para o democrata Joe Biden na eleição de 2020, que culminou no assalto ao Capitólio. Os democratas costumam citar também os perdões judiciais concedidos por Trump a aliados durante seu primeiro mandato como prova de sua disposição de usar o poder para fins pessoais. Em contraste, o presidente Joe Biden repetiu inúmeras vezes que não usaria seu poder para perdoar o filho Hunter Biden, enrolado na Justiça. Era assim que Biden pretendia se diferenciar de Trump. A poucos dias de deixar o cargo, no entanto, Biden igualou-se a Trump.

No domingo, o presidente concedeu o perdão ao filho. Hunter fora condenado por mentir sobre seu uso de drogas em formulários de compra de armas. Biden justificou sua decisão sugerindo que Hunter estava sendo julgado não pelo que fez, mas por ser seu filho. “Ao tentar acabar com Hunter, eles tentaram acabar comigo”, disse Joe Biden. Para o presidente, a Justiça se deixou infectar pela política.

Há até um laivo de plausibilidade nisso. Os republicanos obviamente politizaram as acusações contra Hunter. Fraudes a formulários de armas raramente são processadas e, quando são, costumam ser resolvidas sem acusações criminais. Se Biden tivesse se restringido a essa contravenção, talvez contasse com a clemência pública. Ele poderia, por exemplo, ter comutado a pena. Mas o presidente perdoou Hunter não somente por esse crime, mas também por quaisquer outros “que tenha cometido ou possa ter cometido ou participado durante o período de 1.º de janeiro de 2014 a 1.º de dezembro de 2024″. Isso abrange suspeitas de suborno, assédio sexual e sonegação de impostos – crime pelo qual, aliás, Hunter já se declarou culpado. Para piorar, 2014 foi o ano em que Hunter, sem ter nenhuma qualificação para isso, foi integrado ao conselho de uma empresa ucraniana de petróleo que lhe rendeu milhões de dólares.

A reprovação veio dos próprios democratas. O presidente “pôs sua família acima do país”, disse o governador do Colorado, Jared Polis, e estabeleceu “um mau precedente”. Além disso, ficou no ar a gravíssima sugestão, do próprio presidente da República, de que a Justiça é permeável a interesses políticos.

Há anos Donald Trump se queixa de que o sistema de Justiça foi partidarizado para persegui-lo. No seu futuro governo, o presidente eleito pretende preencher esse sistema com leais seguidores de sua seita e prometeu “vingança”, segundo suas próprias palavras. Biden acaba de conferir o álibi de que Trump precisava. Afinal, ambos agora concordam publicamente que a Justiça foi politizada. Comentando em suas redes sociais o perdão a Hunter, Trump informou que usará os mesmos poderes para perdoar os extremistas condenados por invadir o Capitólio – como se fraudar um formulário para comprar uma arma fosse equivalente a tentar destruir a democracia.

Não é só que Joe Biden manchou a sua reputação. A acusação de favoritismo legal ficará impregnada em seu partido por anos. Mais graves são as consequências para todo o sistema político e judiciário. “Isso só aumenta o cinismo que as pessoas têm em relação à política”, disse Joe Walsh, ex-deputado republicano contrário a Trump. “Esse cinismo fortalece Trump, porque Trump pode simplesmente dizer: ‘Não sou uma ameaça única. Todo mundo faz isso. Se eu fizer algo para meu filho, meu genro, veja, Joe Biden faz a mesma coisa’.”

Desde a sua fundação, a democracia americana foi alicerçada no caráter quase sagrado do Estado de Direito. Ao degradá-lo, Trump, longe de fazer a “América grande de novo”, a diminui. Biden disse repetidas vezes que seu combate a Trump é uma batalha para salvar “a alma da nação”. Ao salvar seu filho da Justiça, contribuiu bastante para perdê-la.

O foguetório do PIB

O Estado de S. Paulo

Taxa de investimento pífia, de 17,6%, mostra como é frágil o crescimento da economia brasileira

A robustez do PIB no terceiro trimestre era tão previsível quanto a pirotecnia que o governo federal promoveria em torno do resultado. O crescimento de 0,9% ante o segundo trimestre foi um décimo acima da mediana das estimativas do mercado e confirmou que o retrato da economia mantém coloração forte, embora alguns tons abaixo do 1,4% registrado no trimestre anterior. Vista de relance, seria uma notícia a suscitar apenas aclamação; o problema são os detalhes.

Depois do anúncio do PIB, o dólar continuou acima da cotação histórica de R$ 6; o Ibovespa, principal índice da bolsa de valores, ensaiou uma alta, mas logo caiu; a atração do capital estrangeiro também não tem acontecido. Numa economia pujante, é natural que informes positivos de imediato valorizem ativos, melhorem perspectivas e até atraiam novos investidores. A questão é que os tais detalhes não são insignificantes.

Os dados apurados pelo IBGE mostram que o consumo do governo opera no maior patamar da série histórica, enquanto o das famílias avança também de forma surpreendente: 5,5% maior ante o terceiro trimestre de 2023. O governo eleva despesas há 14 trimestres consecutivos; as famílias, há 15. São três anos e meio de gastos que, não por acaso, correspondem ao final da gestão de Jair Bolsonaro e à primeira metade do governo de Lula da Silva. Programas governamentais são os principais responsáveis pela alta do consumo das famílias brasileiras.

A melhora do mercado de trabalho, com taxa de desemprego em 6,2%, também contribui, assim como o reajuste do salário mínimo acima da inflação. É obviamente positivo, mas a avaliação depende de outros fatores, sendo o principal deles a sustentabilidade do cenário. Recorde-se que o período imediatamente anterior à tempestade recessiva iniciada em meados de 2014 era também de aparente bonança. A então presidente Dilma Rousseff terminou seu primeiro mandato com indicadores econômicos confortáveis, contas públicas maquiadas pela contabilidade criativa e uma inflação contida na marra. A conta veio pesada, não apenas com recessão, mas com o afastamento de Dilma da Presidência.

O retrato instantâneo do PIB, com valor de R$ 3 trilhões e alta de 4% em relação ao terceiro trimestre do ano passado, é bom. Para este ano as apostas superam os 3,2% (revisados) de 2023. Os petistas correram às redes sociais para comemorar o que chamam de “efeito Lula” e desancar os que classificam como detratores. Se olhassem os dados com mais cuidado, perceberiam que a taxa de investimento de 17,6% ainda é pífia, insuficiente para sustentar um crescimento econômico entre 3% e 4% ao ano de forma mais consistente.

O Brasil precisa crescer em torno de 4% por décadas para alcançar um bom patamar de desenvolvimento e, para isso, o consenso entre economistas é que a taxa de investimento se situe em torno de 25% ao ano. O País precisa equilibrar suas contas para conseguir crescer com sustentabilidade, sem retrocessos. Para isso precisa de uma política fiscal efetiva, não dos remendos que têm sido apresentados.

O "cérebro podre" e as redes sociais

Correio Braziliense

É preciso conscientização digital. Orientar pais e mães criados no mundo analógico e que, muitas vezes, sequer entendem os impactos sofridos pelos filhos no universo digital

A Universidade de Oxford, no Reino Unido, definiu o termo "brain rot", ou "cérebro podre", como a palavra (ou expressão) do ano de 2024. O verbete trata da "suposta deterioração do estado mental e intelectual de uma pessoa, especialmente pelo consumo exacerbado de conteúdo superficial no contexto da internet". 

Segundo a Oxford, houve um aumento de 230% na busca pelo termo entre 2023 e este ano.Trata-se de uma clara manifestação de preocupação da sociedade mundial com o desenvolvimento intelectual das pessoas (ou a falta dele), diante da onda de memes, vídeos superficiais e outros conteúdos do tipo a qual estamos vulneráveis a cada deslize de tela com os dedos.

Um público especialmente é o mais desprotegido ao fenômeno do "cérebro podre": crianças e adolescentes. Em geral, eles estão cada vez mais dependentes de conteúdos virais compartilhados sobretudo nas redes sociais. A pressão pela compra de aparelhos tecnológicos do tipo e pelo acesso às redes aumenta na proporção que todos os colegas de escola, por exemplo, já fazem tal uso. Pais ficam praticamente reféns nesse cenário. 

E o desempenho escolar, também. O relatório do Pisa 2022, divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostra que estudantes com acesso a dispositivos digitais em casa têm resultados piores de aprendizado. Em média, alunos que não ultrapassam uma hora de uso da internet em casa têm desempenho 49 pontos acima em provas de matemática, quando comparados aos que extrapolam esse tempo nas telas. Ao mesmo tempo, 80% dos estudantes brasileiros admitem que são distraídos pelos smartphones durante as aulas. 

A Câmara dos Deputados analisa o Projeto de Lei 104/2015, do deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), que proíbe o uso de dispositivos eletrônicos em sala de aula. O ministro da Educação, Camilo Santana, admitiu o interesse do governo federal pela pauta. A proibição, no entanto, merece uma discussão mais aprofundada. É preciso separar o joio do trigo. São inegáveis as vantagens trazidas pela internet ao aprendizado de estudantes do mundo inteiro. As ferramentas de busca, até mesmo a inteligência artificial, oferecem alternativas interessantes para o desenvolvimento intelectual. E esses mecanismos nada têm a ver com as limitações trazidas pelas redes sociais.

A simples vedação do uso dos dispositivos na escola não vai corrigir problemas que acontecem nas casas de muitas famílias pelo acesso às redes sociais. É preciso conscientização digital. Orientar pais e mães criados no mundo analógico e que, muitas vezes, sequer entendem os impactos sofridos pelos filhos no universo digital.  

Os dados e a experiência empírica são incontestáveis. Mas qual a solução para que a nova geração seja mais independente do mundo digital? Em primeiro lugar, é preciso que os pais entendam que esse papel cabe mais a eles do que às escolas. Contribui para o desenvolvimento das crianças e adolescentes a negação do acesso em excesso a esses dispositivos. Dizer não. Ressaltar os limites. Destacar a importância do pensamento crítico e da convivência em sociedade, que só podem ser alcançados em plenitude quando praticados para além das telas. 

 


 

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