Correio Braziliense
Lula não foi capaz de resgatar o controle do
Orçamento da União pelo Executivo, porque o volume de emendas impositivas
passou a ser ditado pelo Congresso
Desde 2013, por razões conhecidas, entre as
quais a crise de liderança moral dos partidos e das instituições políticas do
país, há um processo de degeneração das relações entre o Executivo, o
Legislativo e o Judiciário, que provocou uma sucessão de crises, até a
tentativa fracassada de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. Esse processo
reproduz uma crise de representação política que ocorre em outras democracias
do Ocidente, porém, que aqui se manifesta desde os protestos de junho daquele
ano.
Seu caldo de cultura é uma “malaise” da sociedade pós-moderna, cujo imaginário social é complexo e incorpora grandes expectativas em relação ao Estado, a maioria das quais acaba frustrada pela realidade. Instabilidade, mutabilidade, fragmentação e fugacidade, no tempo e no espaço, geram perplexidade e angústia existencial na sociedade, que encontra muito mais facilidade de expressão nas redes sociais e seus influenciadores do que nas estruturas político-partidárias e meios de comunicação tradicionais.
Na política, aqui no Brasil, as principais
linhas de força desse processo, no plano institucional, são o enfraquecimento
do Executivo, o avanço do Legislativo sobre o Orçamento da União e a
judicialização da política, sempre que as regras do jogo são atropeladas, o que
acaba por exigir a intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF), muitas vezes
de forma intempestiva. Como se sabe, na democracia representativa, quem faz as
leis não as interpreta.
Depois dos protestos espontâneos de 2013, na
primeira grande crise entre os poderes, Dilma Rousseff foi apeada do poder, por
dois motivos: primeiro, cometeu erros estratégicos que levaram ao colapso a
economia; segundo, subestimou o poder de fogo do presidente da Câmara, Eduardo
Cunha (MDB-RJ), em cuja eleição interferiu e perdeu. A narrativa do golpe
adotada pelo PT não a exime desses erros, o impeachment foi um processo
político. Seu julgamento foi presidido pelo atual ministro da Justiça, Ricardo
Lewandowski. A narrativa do golpe é um discurso político, sob medida para quem
não quer fazer autocrítica.
O segundo momento desse processo foi
resultado da própria a articulação do impeachment. O vice-presidente Michel
Teme (MDB), que por três vezes presidira a Câmara, assumiu a Presidência
contingenciado pelos aliados que afastaram a presidente Dilma, com os quais
compartilhou não somente os cargos da Esplanada, mas também o Orçamento da
União. Havia um projeto estratégico por trás disso. Temer é o principal
defensor da tese do semipresidencialismo, com base nos modelos francês ou
português, não teria razões para se opor ao fortalecimento do Congresso. Esse
era o eixo de seu projeto de reeleição, que não ganhou, porém, a tração
eleitoral necessária para isso.
O vácuo político-eleitoral deixado pelo PT,
pelo PSDB e pelo MDB, com a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, o declínio tucano e o desgaste de Temer, respectivamente, devido à
Operação Lava-Jato, possibilitou o tsunami eleitoral de 2018. A eleição de Jair
Bolsonaro foi reflexo desse apagão político, que abriu espaço para a emergência
de uma extrema-direita de massas e a volta dos militares ao poder. Bolsonaro
tentou mudar o eixo de negociação política com o Congresso dos partidos para as
bancadas temáticas, como a dos evangélicos e a da bala, e as principais frentes
parlamentares da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente, entre outras.
Fracassou.
Orçamento secreto
Ameaçado de impeachment, por causa de
ligações com as milícias do Rio de Janeiro e do “escândalo das rachadinhas” na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro
(PL-RJ), seu filho, à época deputado estadual, Bolsonaro jogou a toalha para o
Centrão. Entregou a gestão dos investimentos do Orçamento da União ao senador
Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, na Casa Civil, e aos presidentes da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AC). E passou
a tecer, com os militares de seu entorno, um projeto golpista.
Foi então que o chamado “orçamento secreto”
se tornou um instrumento de controle do Congresso sobre o Executivo, ampliado e
consolidando o poder Centrão, como uma blindagem para reprodução dos mandatos
parlamentares. Essa é uma das razões para que a maioria dos políticos não
apoiasse a tentativa de golpe de Bolsonaro, pois perderiam esse controle. A
outra foi a experiência de 1964, quando os políticos que apoiaram o golpe que
destituiu João Goulart também foram escanteados do poder pelos militares, por 20
anos.
Eleito presidente da República, Lula não foi
capaz de resgatar o controle do orçamento da União pelo Executivo, porque a
ampliação do volume de emendas impositivas passou a ser ditada pelo próprio
Congresso. Como o PL tem a maior bancada da Câmara e o PT, tendo a segunda, não
opera uma aliança como Centrão, pelo contrário, considera o governo “em
disputa”, Lula não tem força para submeter essas emendas impositivas aos
projetos prioritários do governo. A alternativa é negociar com o Centrão.
O problema é que o “orçamento secreto” viola
as diretrizes constitucionais de elaboração do Orçamento, que exigem
transparência e rastreabilidade, e se tornou um instrumento de superfaturamento
de obras e serviços e de desvio de recursos públicos para formação de
patrimônio pessoal e/ou caixa dois eleitoral, com grande impacto na reprodução
de mandatos. Diante de casos comprovados de que isso vem ocorrendo, o ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino decidiu exigir mais transparência
na execução de emendas no valor de R$ 4,2 bilhões, com indicação de seus
proponentes e dos projetos aos quais foram destinados. O Congresso considera
isso uma intromissão e promete reduzir o poder monocrático dos ministros do
Supremo. Mais uma crise contratada, num jogo de perde-perde para a democracia e
a sociedade.
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