O Estado de S. Paulo
Vídeo de 2024 é quase uma confissão de impotência ante o mercado, assim como a carta de 2002 era a mensagem de que o PT não faria nada do que sempre propôs
Em 2002, quando disputei a minha primeira
eleição a presidente da República, na sucessão de Fernando Henrique Cardoso,
deparei-me com um PT que jurava que não era o PT. A Carta ao Povo Brasileiro,
urdida nos porões da burocracia petista, vendia a alma em troca da aceitação do
mercado financeiro de um governo de esquerda.
E aí já começava a ópera bufa. Aqueles
ativistas radicais que pregavam o “fora FHC” em manifestações estridentes, os
que saíram em caravana pelo dito “Brasil real” para apontar as mazelas do
governo capitalista pareciam não existir mais. Já dos que haviam criticado e se
posicionado contra o Plano Real, nem uma sombra restou.
Lula passara a ser o comandante de um partido pronto a dar garantias de que seria perfeitamente adequado ao establishment. A Carta ao Povo Brasileiro expressava um cavalo de pau ideológico desavergonhado. Ela dizia que sim, os contratos seriam respeitados, mas queria dizer mais: que o mercado financeiro podia confiar que o governo petista manteria tudo como dantes. A Carta sepultou as palavras de ordem e mudou a forma de o Partido dos Trabalhadores compreender a realidade. Antigos inimigos execráveis passaram, rapidamente, à condição de parceiros.
Pois bem, passaram-se 22 anos. Embora o PT
tente equacionar sua geralmente débil credibilidade, que tem origem na
contabilidade criativa do segundo governo Lula e nas traquinagens contábeis do
governo Dilma, sim, há uma história de “malandragens” na gestão da política
fiscal dos governos do PT, e isso turbina o descrédito do mercado, jogando
lenha na fogueira dos processos especulativos.
Nos últimos dias, o mesmo quadro de
desconfiança do chamado “mercado” para com o governo ganhou uma forma aguda. O
centro visível da questão era a distância entre a realidade das contas públicas
e as metas que o próprio governo propôs dentro do arcabouço fiscal.
Mas o descrédito nem veio do quantitativo do
pacote fiscal. O visível descompromisso do conjunto do governo e do presidente
com a montagem das medidas deu a indicação de que o passado da contabilidade
criativa não tinha sido enterrado. Para completar, a desastrosa comunicação do
pacote à sociedade deixou escancarada a dificuldade interna do governo de
articular os compromissos políticos, os interesses estabelecidos e as contas
públicas.
O conjunto de medidas fiscais que tinha apoio
fragmentado internamente ao Executivo chegou ao Legislativo da pior forma.
Primeiro porque a exuberância dos posicionamentos dos presidentes das duas
Casas Legislativas deixou claro que o governo não tinha o controle do processo.
Segundo, porque ver o pacote derrotado indicaria uma imensa fragilidade
política e fiscal.
Os R$ 8 bilhões despejados na forma de
pagamentos de emendas aos parlamentares, em dezembro, não são apenas
anormalidade desta forma heterodoxa de negociação de ideias para baseara
construção das leis quedão suporte jurídico ao funcionamento de nossa economia
e da sociedade brasileira. Em verdade, são fruto do desespero governamental em
perder novamente o jogo do Congresso.
Enquanto isso, as tensões no mundo financeiro
explodiam. As estimativas de taxas de juros futuros foram às nuvens diante dos
movimentos de elevação da Selic e do comunicado do Banco Central de que novas
correções de 1% seriam realizadas nas duas próximas reuniões. As taxas dos
títulos do Tesouro também explodiram, gerando grandes estragos nas carteiras
dos investidores e até dificuldades de negociação de títulos já emitidos.
No mercado de câmbio, a forma mais visível da
crise, o dólar chegou aos R$ 6,30. Não foi pura especulação, afinal há um forte
movimento de transferência de lucros das filiais brasileiras a suas matrizes no
final do ano. Estas podem ter sido turbinadas pela insegurança sobre possíveis
medidas com respeito ao Imposto de Renda das empresas e pelo volume de lucros
gerado em 2024.
Não há dúvida de que ocorreu um processo
especulativo, baseado na insegurança fiscal, na elevação da taxa de juros e na
percepção de debilidade do governo. Pior, o guardião da moeda, o Banco Central,
ficou apenas olhando, como se não tivesse nada que ver com aquilo. Depois, saiu
correndo atrás e teve de despejar bilhões de dólares para estancar a
hemorragia.
Ao final da ópera o País foi brindado com o
vídeo ao povo brasileiro, veiculado pelas redes sociais, com direito à presença
de Lula, Haddad e Galípolo. Nele, Lula sucumbe ao “mercado”, que tanto atacara
recentemente, e promete que não se intrometerá na política monetária do Banco
Central. De quebra, reautoriza Haddad como condutor das decisões sobre as
contas públicas.
O vídeo ao povo brasileiro é quase uma
confissão de impotência ante o mercado. Assim como a Carta ao Povo Brasileiro
era a mensagem de que o PT não faria nada do que sempre propôs. Só que a
discrepância entre o discurso e a prática é o combustível dos processos
especulativos, ancorados na falta de credibilidade.
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