sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

José de Souza Martins - Incertezas do rescaldo de 2024

Valor Econômico

Um fato de certo modo novo aconteceu. A mentalidade de senzala está escapando da chibata do capitão do mato. Ganhou visibilidade na direita e na esquerda

Dezembro de 2024 foi bem diferente de dezembro de 2023. Provavelmente, foi a primeira vez em nossa história que a passagem de ano foi algo bem diverso da mera festa de mudança na numeração cronológica das eras.

Em dezembro de 2022 o país se defrontara com a possibilidade de que nada mudaria com a passagem de ano, não obstante a eleição de um novo presidente da República, em outubro. Havia sinais de que algo estava errado.

O presidente da República se evadira do país, ausentando-se sem permissão do Congresso Nacional. Fê-lo para não passar a faixa presidencial ao sucessor legítimo. Um conjunto extenso de boatos e de inverdades circulava pelas redes a contestar a legitimidade do voto na urna eletrônica e do resultado eleitoral.

Desde 2018, o eleito fora empossado em consequência de uma eleição que ele e sua rede de apoiadores questionavam. No olavismo pseudofilosófico da ideologia autoritária do bolsonarismo, com facilidade demoliram a ordem política, satanizaram a democracia e sua pluralidade de projetos políticos possíveis. Desmoralizaram o mandato enquanto representação política que se legitima na possibilidade da alternância de poder entre verdadeiros partidos, os que têm ideias e princípios.

Com as técnicas de manipulação da consciência de milhões de brasileiros alienados, ressuscitaram a concepção de Deus, pátria e família para fundamento da ordem política do golpe. Cópia da concepção fascista do golpe de Estado de 1937. Coisa de um país que muda sem sair do lugar. Pressupõe que o Brasil carece da anomalia indecente de uma alternativa política sem alternativa, a do monólogo autoritário e excludente. O povo tratado com bando carneiril tutelado por pastores de bodes.

O presidente empossado em 1 de janeiro de 2019 delegou o governo a terceiros sem mandato nem legitimidade, usurpadores do poder, como revelam as apurações da trama golpista, exposta e julgada nas medidas judiciais recentes.

Cercado de adjuntos indevidos, optou pela omissão golpista. Gente escolhida a dedo para ser meramente cúmplice de um governante equivocado. Tudo indica, mal-intencionado quanto à função de governar. Renunciara tacitamente ao mandato.

O que veio depois mostrou que o país se tornara reles campo de exibição extemporânea de motoqueiros e bajuladores. Enquanto milhares de pessoas padeciam e morriam sufocadas com a pandemia de covid, a política era praticada como evento de um Carnaval sem graça. Mais de 750 mil pessoas morreram, quando provavelmente poderiam ter sido salvas se vacinadas.

O poder se transformou em antro de molecagem política, de desrespeito às instituições e aos direitos dos cidadãos. Militares entraram no jogo do partido único. Tacitamente estimularam a baderna como expressão de falso patriotismo, acampamentos de porta de quartel convertidos em feira livre de um projeto de ditadura e da ruína moral e política do país. Fragilizaram a sociedade para que os desertores da ordem democrática pudessem mandar no Brasil. Nem faltou gente da oficialidade fazendo ponte entre os palácios e os ajuntamentos.

Igrejas e pastores tornaram-se cúmplices da subversão. O Deus da porta de quartéis apresentou-se como o deus de falsos e decaídos anjos. O país foi transformado num inferno de insegurança e de incerteza.

As ocorrências recentes, relativas ao desfecho do julgamento dos baderneiros e conspiradores por tentativa de golpe de Estado e subversão da ordem, não encerram a anomalia. A desordem foi apenas o disfarce do lado oculto da trama plantado no subconsciente da população, ressocializada e mobilizada em concepção subjacente de tempo histórico e temporalidade.

Os envolvidos na conspiração têm como referência ritmos e etapas das mudanças políticas que não são as dos calendários eleitorais. O golpe não é cronológico. Suas personagens não são as do cidadão racional e politizado, mas a de místicos de uma finitude apocalíptica, a que inaugura o tempo de quartel como tempo da nação. O tempo de uma sociedade de obedientes cumpridores de ordens em vez de, finalmente, uma sociedade de cidadãos ativos, corresponsáveis pelos destinos do país e da construção de um país. Diferente do bolsonarismo de meganhas da destruição da pátria.

Nesse cenário, um fato de certo modo novo aconteceu. A mentalidade de senzala está escapando da chibata do capitão do mato. Ganhou visibilidade na direita e na esquerda. É antiga, no Brasil, a concepção milenarista do apocalipse. Aqui a revolução política se dá pela inversão do aparente, os toscos dando ordens a generais que, ingênuos, se julgam no comando da transgressão. Estão sendo mandados pelas forças ocultas dos mistérios da política do Brasil atrasado.

 

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