sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Pedras no caminho – Flávia Oliveira

O Globo

A ONG Rio de Paz escolheu o último sábado de 2024 para ratificar a luta travada contra a violência que, em quatro anos, ceifou a vida de 49 crianças no Estado do Rio. Instalaria na Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões-postais da capital fluminense, fotografias de cada menina e cada menino mortos por bala perdida desde 2020. Dias antes, exibira as mesmas imagens em ato nas areias da Praia de Copacabana, cenário igualmente marcante de atuação da organização. O fim de ano seguiria seu curso, não fosse a decisão do prefeito Eduardo Paes de mandar retirar, sem aviso prévio, os cartazes de uma manifestação que, há quase uma década, ocupa o mesmo endereço sem licença oficial.

O prefeito, ora empossado para o quarto mandato, apelou à ordem pública para justificar o arbítrio. Rememorou um símbolo dos seus primeiros quatro anos no cargo. Acertou quem vislumbrou o aceno de um potencial candidato a governador a porções conservadoras do eleitorado fluminense, gente que vibra com higienismo social e detesta “ongueiros”. Paes disse que qualquer homenagem precisa de autorização da prefeitura, “mediante a apresentação de um pedido formal”. Nem parecia o mesmo político que, dois anos atrás, elogiara a Rio de Paz no documentário “A estética da luta”, de Guillermo Planel:

— Se gosto daquelas fotos na Lagoa Rodrigo de Freitas, certamente não. Adoraria chegar lá e dizer: “Não pode mais isso”. Mas é uma realidade da cidade. Acho que o espírito provocador de quem cutuca, de quem trabalha com muita competência a imagem para chamar atenção, é muito importante para a cidade. Estamos falando de vidas que se perderam pela violência do Rio. O que a ONG faz é dar um tapa na cara de todos nós, independentemente da função social, da posição que a gente ocupa, para chamar atenção para isso: “Não é normal a gente ter essa quantidade sendo assassinada nessa cidade permanentemente, por causa da violência”.

Em nota, a prefeitura avisou que avalia a pertinência de manter a homenagem a policiais militares assassinados, também há anos no local:

— O município tem total interesse em combater a violência, prestar justas homenagens às suas vítimas e está aberto para debater qualquer tipo de iniciativa, desde que seja previamente consultado.

Às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016, moradores da Lagoa já tinham instado um subprefeito de Paes a retirar da orla as peças que denunciavam a violência homicida e, ao mesmo tempo, homenageavam as vítimas. Nunca incomodou que a área, na origem Piraguá ou Sacopenapã, leve o nome de Rodrigo de Freitas, último proprietário do engenho ali em operação, adquirido do sogro em 1707. Nem que a vizinhança ostente um edifício Borba Gato, o bandeirante paulista que, além de fugitivo da lei e contrabandista de ouro, segundo Laurentino Gomes, autor da trilogia “Escravidão”, “fez fama e fortuna na segunda metade do século XVIII percorrendo os sertões brasileiros à caça de indígenas para escravizar”.

A História costuma ser contada por vencedores; aos derrotados, o apagamento, a invisibilidade. Na esteira de pesquisas e vontade política, muito do que estava soterrado havia séculos emergiu em décadas recentes, num movimento tão justo quanto pedagógico. Indígenas, negros, mulheres, aos poucos, tomam ciência da relevância que tiveram — e têm — na construção de cidades, estados, do país, na luta por direitos.

Denunciar violências é meio de combatê-las. Da coragem de Maria da Penha Maia Fernandes em expor a violência doméstica que sofria e buscar justiça nasceu a Lei 11.340/2006, que pune os agressores. Ainda outro dia, festejávamos a bravura da francesa Gisèle Pelicot, vítima de estupros em série planejados pelo próprio marido. Ela comoveu o planeta ao abrir mão do anonimato para “fazer a vergonha mudar de lado”. Espera-se, com isso, que a França avance em legislação mais clara e rígida contra agressores sexuais.

Dias antes de a manifestação do Rio de Paz ser removida, o Instituto Fogo Cruzado informou que, em 2024, 26 crianças foram atingidas por balas perdidas na Região Metropolitana do Rio; quatro morreram. Foi o maior número de baleados em nove anos de acompanhamento. Em novembro, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública contabilizou que, em uma década, 445 mil pessoas negras foram assassinadas no país. Em 2023, de cada cem vítimas de letalidade violenta, 78 tinham a pele preta ou parda.

É uma carnificina naturalizada, que não comove, não tira o sono, mal para a rotina de um bairro. O esforço de exibir nomes e retratos dos brasileirinhos mortos por bala perdida no Grande Rio, como fez a Rio de Paz, tem a intenção de escancarar a humanidade de cada um; expor a injustiça; exigir indignação; despertar empatia; cobrar solução. Mas, no meio do caminho, estão a pedra da burocracia, a rocha do conservadorismo.

 

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