CartaCapital
Negacionismo climático, macarthismo moral e
religioso, imperialismo
No primeiro dia do seu segundo mandato, Donald Trump assustou
o mundo com um vendaval de 78 ordens executivas, devastando pontos centrais da
administração Biden. O que mais assustou não foi tanto o número de ordens, mas
o significado e o conteúdo.
As medidas de maior impacto internacional foram a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde e do Acordo de Paris, a mais preocupante. No plano interno, anistiou 1,5 mil condenados pela tentativa de golpe e invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Declarou emergência nacional na fronteira com o México, iniciando um implacável ataque aos imigrantes. Instituiu a política de comércio “América Primeiro”, definiu que nos Estados Unidos existem apenas dois gêneros, masculino e feminino, mudou o nome do Golfo do México para “Golfo da América”, radicalizou a chamada liberdade de expressão, suprimindo qualquer regulamentação, revogou políticas favoráveis a minorias e decretos para conter o avanço sem controle da Inteligência Artificial, entre outros retrocessos.
Foi tão avassalador que adotou uma medida
claramente inconstitucional. Com um decreto, pôs fim à cidadania por direito de
nascença no solo norte-americano, protegida pela Constituição. Mudar a
Constituição dos EUA é muito difícil e nem de longe o presidente tem força
política para acabar com esse direito. De qualquer forma, travará uma briga nos
tribunais.
As medidas e os discursos nas cerimônias de
posse não têm um sentido único. No plano internacional, e considerando medidas
contracionistas adotadas no primeiro mandato, Trump parece adotar uma política
de desengajamento global e de abandono e até hostilidade em relação às
organizações multilaterais. Nesse sentido, desconstrói a política de hegemonia
imperial que os Estados Unidos desenvolveram desde o trânsito do século XIX
para o século XX. Isso implica que Washington sob Trump dará pouca importância
a alianças baseadas em valores e compromissos com a democracia liberal
ocidental.
De forma ambígua, ao mesmo tempo parece
querer viabilizar um expansionismo doméstico. É esse o sentido de suas
investidas em relação ao Canal do Panamá, Groenlândia, Canadá e até do México.
Segue a velha Doutrina Monroe, projetada pelo presidente James Monroe por volta
de 1823. Quer dizer: Trump não vai engajar-se em outras partes do mundo, mas
não permitirá que ninguém interfira no seu quintal.
Parece ainda querer restaurar outra política
do passado numa nova ordem internacional: reconhecer que as grandes potências
têm direito a zonas ou esferas de influência. Essa política pode até estar em
linha com as ambições da Rússia e da China. No primeiro caso, uma possível
saída para a guerra da Ucrânia seria a concessão de parte do território à
Rússia. No caso da China, caberia a ela resolver o problema de Taiwan. Mas ao
mesmo tempo que indica aceitar a política de esferas de influência, emite
sinais de que apoiará, mundo afora, governantes, partidos e movimentos de
extrema-direita.
Para Trump, a América Latina, incluindo o
Brasil, tem pouca importância. A questão de maior interesse é a forte presença
comercial da China. O conflito com Pequim parece, contundo, ser menos
comercial, mas acerca de quem liderará a corrida tecnológica. Não por acaso,
Trump cercou-se dos donos das big techs e anunciou vultoso investimento em IA.
Esses bilionários foram elevados à condição de chefes de Estado privados.
Trump fez várias declarações de que adotará
políticas comerciais protecionistas. Até que ponto avançará com isso é algo a
se ver. Especialistas dizem que uma das consequências seria o aumento da
inflação.
Tudo indica que os Estados Unidos serão
varridos por uma forte onda conservadora, impulsionada por setores religiosos
evangélicos e por supremacistas brancos. As minorias serão perseguidas, até
mesmo com violência. Com o comunismo morto, Trump, os evangélicos e os
supremacistas brancos adotarão uma espécie de furioso macarthismo moral e
religioso.
A medida mais preocupante é a retirada do
Acordo de Paris. Com uma crise ambiental cada vez mais apocalíptica e com os
governos omissos, a forte recarbonização dos EUA e o negacionismo oficial
provocarão danos irreparáveis.
Queira-se ou não, Trump, com todo seu
radicalismo conservador, com todo seu voluntarismo desorganizador, terá de ser
aceito interna e internacionalmente como um ator de fato e como um perturbador
legitimado pelas urnas. Somente o crescimento da resistência interna poderá
impor limites. Todos os norte-americanos democratas, civilizados e
progressistas têm a tarefa de começar a construir desde já um caminho que leve
a uma derrota do trumpismo na renovação da Câmara e no Senado nas eleições de
meio de mandato. •
Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.
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