Folha de S. Paulo
Trump investe na rima entre isolacionismo e
imperialismo
A palavra China apareceu apenas duas vezes –e
no contexto da promessa de retomada do Canal do Panamá. Rússia não apareceu,
bem como Ucrânia. O discurso de posse de Trump, uma cisão radical com a
política externa tradicional dos EUA, teve os traços característicos do
isolacionismo. Exceto por McKinley, como Trump decidiu renomear, uma vez mais,
o Monte Denali.
Denali, no Alasca, altitude de 6.190 metros, a mais alta montanha do mundo da base ao cume entre as que estão totalmente acima do nível do mar, foi rebatizado em homenagem a McKinley em 1896. O presidente William McKinley, um ardoroso defensor de tarifas comerciais, conduziu a Guerra Hispano-Americana (1898) na qual os EUA conquistaram as Filipinas, o Havaí, Guam e Porto Rico. A expansão imperial pelos dois oceanos, em linha com o pensamento geopolítico de Alfred Thayer Mahan, seria completada por Theodore Roosevelt com o Canal do Panamá.
Destino Manifesto. A expressão cunhada em
meados do século 19 sintetizava a ideia de uma nação-ilha que, após a aquisição
da Louisiana (1803), estendeu-se das colônias atlânticas originais até a costa
do Pacífico. No ápice do imperialismo americano, Mahan e Roosevelt ampliaram o
conceito para abranger os próprios oceanos e o istmo que os delimita. Ao
exumá-lo, Trump investe na rima entre isolacionismo e imperialismo.
"Temos um oceano entre nós",
registrou Trump referindo-se à Europa –e à guerra imperial russa na Ucrânia.
Não é novidade. A base da Doutrina Monroe (1823) era a separação geopolítica
entre o Velho Mundo e o chamado Hemisfério Americano. Até a Segunda Guerra
Mundial, com o breve intróito da Grande Guerra (1914-18), o isolacionismo deu o
tom das relações dos EUA com a Europa. Foi nesse longo período que os EUA
estabeleceram sua esfera de influência nas Américas e sua hegemonia nos dois
grandes oceanos.
Retomar o Canal, anexar a Groenlândia,
promover incursões militares contra os cartéis mexicanos. Mirando o passado,
Trump aventa restaurar aquela "era de ouro", enquanto descortina a
glória futura: fincar a bandeira das estrelas em Marte. E o presente, isto é, a
Pax Americana abalada pela ascensão da China e pela guerra no centro da Europa?
Os imigrantes indocumentados e seus filhos
têm razões para sentir pavor. Há motivos nos temores do Panamá, do México,
mesmo da Dinamarca, aliada na Otan. China e Rússia, não. Trump prometeu impor
tarifas sobre os dois vizinhos no início de fevereiro, mas apenas disse que
negociará com Xi Jinping –e reverteu temporariamente o banimento do TikTok.
Quanto à guerra russa, ensaiou vagamente impor sanções econômicas contra um
país já acossado por sanções de todos os tipos. O leão só ruge diante de
gatinhos.
Xi Jinping e Vladimir Putin terão sorrido ao
final do discurso de posse. Se Trump invoca o Destino Manifesto para veicular
ameaças à integridade territorial de pequenos países aliados, como poderá
contestar uma eventual conquista chinesa de Taiwan ou a imposição de um
protetorado russo sobre a Ucrânia?
À sombra de McKinley, Trump escancarou seu
desprezo à ordem internacional baseada em regras que foram erguidas no
pós-guerra e consolidadas ao final da Guerra Fria. No lugar delas, rabiscou os
contornos de um mundo fragmentado em esferas de influência das grandes
potências. Isolacionismo e imperialismo não são conceitos mutuamente
excludentes.
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