sábado, 25 de janeiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

O valor do nosso cinema

Correio Braziliense

Podemos, sim, sonhar com a premiação para uma obra que mostra ao Brasil e ao mundo um passado que não pode ser esquecido nem tratado com irresponsabilidade

Com Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, o filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, concorre ao Oscar de 2025 em três categorias: melhor filme internacional, melhor atriz e melhor filme. Não foram surpresas as indicações para as duas primeiras categorias. Porém, a disputa pela condição de melhor filme é um enorme salto para o nosso cinema, pois trata-se de uma equiparação às melhores produções cinematográficas entre milhares dos Estados Unidos, do Reino Unido, da França e do Canadá.

É um feito histórico que projeta o nosso cinema a um novo patamar, seja de qualidade, seja de audiência, o que nos fará muito bem do ponto de vista da autoestima dos brasileiros, da valorização de nossa identidade cultural e, sobretudo, da importância da democracia para o nosso país. No topo da premiação de maior prestígio nos Estados Unidos, o longa-metragem é uma contundente denúncia política, em forma de drama de família, numa conjuntura muito especial tanto para nós quanto para a sociedade norte-americana.

Ainda estou aqui retrata a vida da família do ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, sequestrado e assassinado no quartel da Polícia do Exército da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Rio de Janeiro, em 1971. Mais de 50 anos depois, a história resgata um passado sombrio, o regime militar instalado após o golpe que destituiu o presidente João Goulart, em 1964. Entretanto, faz isso com enorme sensibilidade e de forma nem um pouco panfletária. É pura dramaturgia.

Sucesso de bilheteria e faturamento, ao contrário de outras obras do gênero que também retratam os anos de chumbo, o filme dirigido por Walter Salles é emocionalmente denso e contido, embora muito forte do ponto de vista político. Ainda estou aqui é inspirado no livro, lançado em 2015, de Marcelo Rubens Paiva, escritor, dramaturgo e jornalista paulista, filho do ex-deputado federal do PTB cassado durante a ditadura militar.

Na categoria de melhor filme, a indicação já é uma enorme conquista. Concorrem ao prêmio as maiores indústrias do cinema de Hollywood, como A24, Netflix, Amazon, Mubi, Universal e outras. O fato de Ainda estou aqui ter sido indicado nessa categoria, porém, aumenta a chance de levar a estatueta de melhor filme internacional, uma disputa dura com o francês Emilia Pérez, de Jacques Audiard, que também concorre na categoria principal.

As maiores oponentes de Fernanda Torres na disputa pela estatueta de melhor atriz serão Demi Moore, que também levou o Globo de Ouro de Melhor Atriz, na categoria Musical/Comédia, por Substância, e Karla Sofia Gascón, primeira atriz trans a ser indicada ao prêmio.

Por mais que se diga que uma premiação não é o mais importante e que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana — The Academy — esteja subordinada aos interesses comerciais, o Oscar é o maior reconhecimento que a indústria cinematográfica oferece à Sétima Arte. 

Podemos, sim, sonhar com a premiação para uma obra que mostra ao Brasil e ao mundo um passado que não pode ser esquecido nem tratado com irresponsabilidade. Os crimes cometidos pelo Estado ditatorial precisam ser relembrados para que nunca mais atentem contra a democracia. A festa verde e amarela tem dia e hora marcados: 2 de março, às 20h (hora Brasília), em pleno domingo de Carnaval.


É descabido tentar reduzir na marra o preço de alimentos

O Globo

Lula diz não querer reviver tempos dos ‘fiscais do Sarney’, mas não espantaria se seu governo criasse algo parecido

Causa preocupação a tentativa do governo Luiz Inácio Lula da Silva de reduzir o preço dos alimentos. Embora até o momento ninguém saiba exatamente o que ela significa — nem mesmo o próprio governo, a julgar pelas declarações desencontradas —, parece evidente que traduz impulsos profundamente equivocados sobre o funcionamento da economia. Não seria a primeira vez que o Brasil cairia na esparrela de acreditar que o governo tem poderes mágicos de conter a inflação intervindo nos mercados. Ao menos se esperava que, depois de anos de hiperinflação e planos econômicos mirabolantes fracassados, tivesse aprendido. Pelo visto, não aprendeu.

Uma das principais cobranças feitas por Lula na reunião ministerial da última segunda-feira foi por iniciativas para controlar o preço dos gêneros alimentícios. Foi o mote para surgir todo tipo de desvario. Na quarta-feira, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, disse que conversaria com ministros “para buscar um conjunto de intervenções que sinalizem para o barateamento dos alimentos”. Afirmou ainda que o governo acataria sugestões dos varejistas. Como era de esperar, a declaração assustou. Até porque, tratando-se de um governo do PT, a tentativa de intervenção soa verossímil. Costa se apressou a dizer que o termo “intervenções” não significava intervenção. Em entrevista, sugeriu substituí-lo por “medidas”, como se a troca de palavras tivesse o condão de dissipar os temores.

Integrantes do Planalto dizem que as iniciativas ainda não estão decididas. Rechaçam “intervenções” como controle de preços, subsídios ou taxação de exportações. Costa falou em reduzir impostos sobre importados, uma ideia razoável. O governo também analisa aumento de crédito agrícola e assistência a agricultores, além de cogitar mudanças na regulamentação de cartões de refeição e alimentação, para reduzir taxas cobradas dos lojistas. Não é questão simples. Há dois anos, Fazenda e Banco Central se digladiam sobre o tema. Não há mágica: reduzir o custo para alguns significa que outros pagarão a conta.

A preocupação com o preço dos alimentos não é descabida. Qualquer brasileiro que vá ao supermercado sabe que os preços têm subido. O IPCA-15, prévia da inflação oficial, foi de 0,11% em janeiro, acima da expectativa de queda. Para infortúnio do governo, a inflação dos alimentos pressionou o resultado. A de serviços está há meses muito acima do patamar razoável.

Há um consenso entre cientistas políticos: quando o preço nas gôndolas sobe, a popularidade do governo cai. Isso já é sentido. De acordo com pesquisa Quaest, 78% dos brasileiros consideraram ter havido aumento no preço dos alimentos e 65% nas contas de água e luz, patamares mais altos desde o início do mandato. Quaest e Datafolha já apontam alta na reprovação de Lula.

O governo acerta no diagnóstico, mas erra no remédio. É demagógica a tentativa de conter a inflação com intervenções estatais. O preço dos alimentos tem dinâmica própria, influenciado por oferta e demanda, clima, safra, cotações internacionais. Derrubá-lo à base da canetada sempre dá errado. O próprio Lula atrapalha com sua resistência a promover um ajuste fiscal confiável. E há sempre o risco de o governo repetir erros do passado, que resultaram nos folclóricos “fiscais do Sarney” do Plano Cruzado. Lula tem dito que não quer revivê-los, mas não espantaria se criasse algo parecido.

Venda de carne estragada é um caso que não pode se repetir

O Globo

Desvio de 800 toneladas afetadas por enchente e impróprias para consumo expõe falha na vigilância sanitária

É inadmissível que 800 toneladas de carne estragadas por terem ficado submersas nas enchentes do Rio Grande do Sul tenham sido vendidas para açougues de todo o país. É uma falha gravíssima do sistema de vigilância sanitária. Quando o crime foi descoberto, a polícia só conseguira rastrear o destino de 17 toneladas. Nos últimos dias, parte dos lotes foi encontrada até no Uruguai. É crucial encontrar o resto da carga e alertar a população. Entre os riscos para o consumidor está a possibilidade de contrair leptospirose, doença comumente diagnosticada em quem tem contato com água contaminada.

O destino do produto, vendido a preço baixo por seguradoras, era a produção de ração animal ou de graxas. Quem comprou foi a empresa Tem Di Tudo, de Três Rios (RJ), que revendeu 15 toneladas a uma distribuidora de Betim (MG) como se fosse carne de boa qualidade. Esta repassou a mercadoria a um frigorífico de Cachoeirinha (RS). Verificados os lotes, descobriu-se que faziam parte da carga vendida como imprópria para consumo humano. De acordo com os policiais, a intenção criminosa ficou evidente, pois a mercadoria fora maquiada. Os pacotes foram limpos e postos à venda. Os sócios e o diretor de logística da Tem Di Tudo foram presos, acusados de associação criminosa, adulteração de produtos e alimentos. Podem também ser denunciados por lavagem de dinheiro. Calcula-se que, comprando por apenas R$ 0,90 o quilo, tenham gastado R$ 720 mil e faturado cerca de R$ 5 milhões.

Na operação foram também encontrados medicamentos e testes para Covid-19 vencidos. A polícia suspeita de um esquema maior de venda de mercadorias impróprias. No mesmo endereço em Três Rios, há outras empresas controladas pelos presos. Além da distribuidora de alimentos, uma loja vende itens para casa e outra peças para iluminação. Uma das empresas diz atuar no setor de “reciclagem e sustentabilidade”, outra trabalhar com “gestão e administração de negócios”.

Depois das enchentes de abril do ano passado, a polícia gaúcha registrou diversos flagrantes de carne imprópria vendida normalmente. O caso da Tem Di Tudo é o primeiro descoberto noutro estado, em investigação conjunta das delegacias de defesa do consumidor do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. O crime não é apenas grave em si. Ele pode prejudicar a imagem do Brasil como exportador de carnes, pois uma falha dessa dimensão põe em xeque todo o sistema de vigilância sanitária.

Por isso a investigação precisa ser exemplar. As punições devem fazer com que todo o comércio tome extremo cuidado na venda de alimentos. Também será necessário que as autoridades sanitárias analisem em detalhes o crime cometido, para fazer os devidos ajustes no sistema de vigilância. Um caso tão escandaloso não pode se repetir.

Abuso do sigilo de informações públicas precisa acabar

Folha de S. Paulo

Governo prepara mudanças na lei que permite segredo de cem anos; Lula e Bolsonaro distorceram princípio da transparência

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estuda propor neste ano modificações pontuais na Lei de Acesso à Informação, com foco sobretudo no trecho que permite a autoridades decretar sigilo de até cem anos para informações pessoais.

Trata-se de promessa de campanha. Em 2022, o petista criticou, com razão, o abuso desse mecanismo por parte da gestão Jair Bolsonaro (PL), que o utilizou de maneira a livrar de escrutínio diversos atos questionáveis ou suspeitos praticados pelo então presidente e por seus aliados.

Houve, de fato, retrocesso acintoso durante o governo anterior, quando o manto do segredo revestiu informações de evidente caráter público —como o processo disciplinar instaurado contra o general Eduardo Pazuello e a lista das vezes em que os filhos de Bolsonaro visitaram o Planalto.

Esses e outros casos envolvendo o círculo do agora ex-presidente configuraram clara distorção do dispositivo legal, cuja função é garantir proteção à intimidade, vida privada, honra e imagem dos cidadãos em geral. A prerrogativa, no entanto, não deveria beneficiar figuras públicas que têm contas a prestar à sociedade.

Lula, que empenhou sua palavra em acabar com essa deturpação, agiu da mesma forma que seu antecessor. Sob direção do petista, tornaram-se sigilosas, por exemplo, informações relativas à agenda da primeira-dama e à declaração de conflito de interesses do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.

Agora, na metade do mandato, o governo parece se mobilizar para bloquear a brecha pela qual passaram esses variados episódios de desfaçatez e desrespeito a princípios republicanos básicos.

A primeira iniciativa, de setembro de 2024, foi uma portaria normativa da Controladoria-Geral da União, segundo a qual o sigilo de uma informação permanecerá por até 15 anos, e não cem, sempre que for decretada uma restrição de acesso sem indicação expressa quanto ao prazo.

A novidade representa um avanço pequeno e, na prática, possibilita um retrocesso ao prever a reavaliação ad infinitum da restrição de acesso ao fim dos 15 anos —em outras palavras, um convite ao sigilo eterno.

A outra iniciativa é mais importante, por se tratar de projeto de lei. Segundo se noticia, pretende-se que, no caso dos cidadãos comuns, o sigilo para informações pessoais esteja limitado a cinco anos após a morte do indivíduo; no caso de agentes públicos, o acesso aos dados ocorreria com mais facilidade do que hoje.

O prazo, a bem da verdade, é o de menos; mais relevante é definir quais informações podem ser enquadradas como de caráter pessoal e quais devem ser tratadas como públicas, ainda que digam respeito a indivíduos sem cargo no aparato estatal —como a primeira-dama, por exemplo.

É necessário recuperar a ideia —perdida nos últimos anos— de que, na administração pública, a transparência deve ser a regra, e o segredo, a exceção.

O calcanhar de Aquiles do Pé-de-Meia

Folha de S. Paulo

Programa é inovação importante do governo Lula, mas TCU vê irregularidades; correto seria acomodá-lo logo no Orçamento

Em um governo que priorizou o resgate de marcas e bandeiras do passado, o programa Pé-de-Meia, que busca conter a evasão escolar no ensino médio, é raro exemplo de política pública inovadora e relevante em seus propósitos. A iniciativa, porém, acaba de ter recursos bloqueados pelo Tribunal de Contas da União, por problemas que já eram visíveis em seu nascedouro.

A decisão do TCU não diz respeito ao mérito do Pé-de-Meia. O programa paga bolsas de R$ 200 mensais a alunos de famílias beneficiárias do Bolsa Família que frequentem a escola. Também institui para eles uma poupança, com depósitos anuais de R$ 1.000, cujo valor poderá ser sacado ao final do ensino médio.

Tal modelo é defendido por especialistas do setor a partir de experiências locais e internacionais. Foi incorporado ao programa de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2022, como uma das condições para o apoio de Simone Tebet (MDB), hoje ministra do Planejamento. Para viabilizá-lo, aprovou-se projeto apresentado em 2021 pela deputada Tabata Amaral (PSB-SP).

A boa recepção levou a administração petista a fazer do programa sua principal vitrine na educação. Mais recentemente, o Planalto adaptou a ideia para estimular com bolsas professores dispostos a lecionar em áreas remotas e estudantes dispostos a cursar licenciaturas.

O calcanhar de Aquiles do Pé-de-Meia, desde o início, foi seu financiamento. Depois de ter promovido uma expansão exorbitante do gasto público mesmo antes de tomar posse, o governo Lula criou um intricado mecanismo para o pagamento das bolsas, valendo-se de fundos de natureza jurídica privada —dessa forma, os desembolsos não transitam pelo Orçamento federal.

Foi por esse motivo que o TCU, atendendo recomendação da área técnica, bloqueou nesta semana R$ 6 bilhões reservados ao programa, o que ameaça prematuramente sua continuidade.

Se não conseguir reverter a medida do tribunal, o Executivo terá de incluir desde já o Pé-de-Meia no Orçamento, o que prometia fazer só em 2026, e submetê-lo aos limites da despesa pública —provavelmente com cortes de verbas para outras ações de governo.

Isso é o correto a ser feito, tenha o TCU extrapolado ou não suas atribuições. Trata-se de uma política de caráter continuado, cuja execução deve se dar com transparência e estar sujeita ao escrutínio da sociedade. Para ter sua sustentabilidade garantida, ademais, precisa caber nas contas do Tesouro Nacional, sem manobras de contabilidade.

Lula, Tarcísio e o palavrório climático

O Estado de S. Paulo

Governador paulista cria um centro de gestão de risco de desastres e um conselho para monitorar a estratégia climática. Lula deveria seguir o exemplo e tirar do papel a Autoridade Climática

O governador Tarcísio de Freitas anunciou uma bem-vinda novidade para quem acredita que enfrentar a mudança do clima requer mais do que palavrório e promessas: a criação de um novo centro de gestão de risco de desastres, o Centro Paulista de Radares e Alertas Meteorológicos (CePRAM), e do Conselho Estadual de Mudanças Climáticas. O Centro receberá informações dos sete radares meteorológicos do Estado, permitindo a integração dos equipamentos e a centralização dos dados, que serão analisados por uma equipe de meteorologistas, hidrólogos e geólogos. O CePRAM ficará subordinado ao Centro de Gerenciamento de Emergências da Defesa Civil. Já o Conselho Estadual de Mudanças Climáticas vai monitorar, de maneira consultiva, a implementação de políticas na área, atuando junto ao Comitê Gestor de Política Estadual de Mudanças Climáticas. Seus integrantes terão mandato de dois anos.

Se bem implementadas, as iniciativas significam uma adequada resposta dupla ao que cientistas chamam de “novo clima”, isto é, ondas de calor que se combinam a chuvas muito intensas, produzindo extremos climáticos cada vez mais frequentes. Foi o que se viu nos últimos anos no Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia, Santa Catarina, Minas e Rio de Janeiro. Os paulistas conviveram em 2024 com seca extrema e uma onda de incêndios que atingiram dezenas de municípios do interior. Os melhores esforços internacionais apostam na conjugação de ciência e tecnologia, e entre alertas e mitigação de riscos com implementação de medidas de prevenção e adaptação às mudanças climáticas. É no que, acertadamente, o governo de São Paulo parece apostar.

Por sua experiência, o governador sabe a importância dessas duas frentes. Sabe também que não basta mais dinheiro para reagir a um desastre, é preciso que gestores públicos tenham capacidade de estruturar e apresentar projetos aptos a receberem os recursos. Recorde-se que, em 2019, o Ministério da Infraestrutura, à época comandado por Tarcísio, trabalhou num acordo de cooperação com uma agência de fomento alemã para credenciar obras a um protocolo de adaptação a mudanças climáticas. Também não basta fazer planos, é preciso implementar as ações previstas nos planos e ter capacidade de atualizá-las em tempo hábil e com eficácia. É o tipo da obviedade que infelizmente precisa ser reafirmada no Brasil.

As iniciativas do governo paulista deveriam servir de exemplo para o governo do presidente Lula da Silva. O Brasil fechou 2024 podendo comemorar dois anos de quedas no desmatamento e o anúncio de um novo compromisso de redução de emissões de gases de efeito estufa. Lula pôde reafirmar seu desejo delirante de ser o líder global no G-20, mas internamente 2024 chegou ao fim com a marca de 30,9 milhões de hectares consumidos pelas queimadas, com 278 mil incêndios na mata, um aumento de 46% em relação a 2023 e o pior resultado desde 2007, além de uma incômoda hibernação da promessa de criação de uma Autoridade Climática. Ideia apresentada na campanha presidencial, a Autoridade deveria monitorar e supervisionar as ações relativas às políticas e metas na área, além de gerenciar o combate e a prevenção aos desastres climáticos.

“Se Deus quiser, em breve”, disse, em abril de 2023, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, ao ser questionada quando o governo retiraria a ideia do papel. Pelo visto Deus não quis, premido pela disposição da Casa Civil do ministro Rui Costa de deixar o projeto guardado em suas gavetas. Fala-se abertamente em divergência de modelo e disputa de quem abrigará o novo órgão, se o Ministério do Meio Ambiente ou a Presidência – ou nenhum deles. É um bom debate, que exige decisão, e não postergação, do presidente Lula. Enquanto isso, quando está diante de plateias internacionais, o demiurgo petista demonstra ter plena convicção de que é um herói da floresta e o salvador do planeta. No plano doméstico, contudo, sua hesitação deixa revelar a pouca intimidade com que sempre tratou as questões ambientais.

Quem sabe os movimentos de Tarcísio – frequentemente citado como possível candidato em 2026 – estimulem Lula a agir e perceber que, em se tratando de desastres climáticos, ações são incomparavelmente mais úteis do que palavras e simbolismos.

Prefeitura desafia a lei da oferta e da procura

O Estado de S. Paulo

Cruzada contra os mototáxis em São Paulo será inútil, pois se há oferta é porque há demanda por transporte não atendida por outros modais. É com isso que o prefeito deveria se preocupar

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), está em uma cruzada contra as empresas de aplicativos de transporte 99 e Uber, que recentemente passaram a oferecer mototáxis na capital paulista. As empresas, por sua vez, também têm travado uma batalha judicial contra a Prefeitura para manter a oferta do serviço. Elas alegam estar amparadas pela legislação e até por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de repercussão geral. Imbróglio jurídico à parte, uma coisa é certa: se há oferta de mototáxis é porque há demanda por transporte não atendida por outros modais. É com isso que o prefeito deveria estar preocupado.

Nunes aduz razões de segurança para tentar impedir a circulação dos mototáxis, inclusive empregando termos duros para se referir às empresas, as quais ele acusa de promoverem uma “carnificina” na cidade de São Paulo. Ora, se a segurança no trânsito é realmente a principal preocupação do prefeito, seu governo deveria estar muito mais empenhado em conter as barbaridades que motociclistas praticam no dia a dia da maior cidade do País desde muito antes de a 99 e a Uber começarem a oferecer o transporte de passageiros sobre duas rodas.

Não há paulistano que saia às ruas hoje e não testemunhe motociclistas dispostos a matar ou morrer em cada cruzamento da cidade para economizar tempo ou até mesmo por diversão. É corriqueiro o desrespeito aos semáforos, aos limites de velocidade e às ciclovias, transformadas, na prática, em “vias expressas” para as motos, entre outras infrações de trânsito. E essa bandalheira urbana se instalou em São Paulo, obviamente, sem que uma sombra de fiscalização municipal ameace a audácia dos motociclistas irresponsáveis, que dirá repreendê-los.

Mas concedamos o benefício da dúvida e admitamos que o prefeito esteja realmente preocupado com a segurança no trânsito e o bem-estar dos munícipes. De fato, andar de moto é sabidamente mais perigoso do que de carro. Em uma metrópole como a capital paulista, esse perigo é drasticamente aumentado. Se é este o caso, então, ao invés de reprimir as empresas 99 e Uber, Nunes deveria entender por que tantos paulistanos procuram o serviço de mototáxi, que, como é notório, sempre foi oferecido de forma clandestina na cidade, particularmente nas periferias. Parece evidente para qualquer pessoa de bom senso que isso ocorre em razão da falta de cobertura de transporte por outros modais em áreas muito distantes do centro.

Em geral, as pessoas utilizam mototáxi para percorrer pequenas distâncias, como, por exemplo, o trajeto entre o último ponto de ônibus ou estação de trem ou metrô e suas casas. Esse serviço, como foi dito, já é oferecido rotineiramente a milhares de paulistanos todos os dias, à margem da lei. Afinal, os cidadãos precisam se locomover. Se a Prefeitura e o governo do Estado não atendem a essa demanda com qualidade e eficiência por meio de seus ônibus, trens e metrô, alguém haveria de fazê-lo. Das duas, uma: ou o poder público melhora a oferta do serviço de transporte sob sua gestão, fazendo chegá-lo a todos os que precisam – e, assim, reduzindo sensivelmente a demanda por mototáxis –, ou essa modalidade de locomoção continuará tendo procura, devendo apenas ser regulamentada e fiscalizada em nome da segurança de todos.

A segurança no trânsito, sem dúvida, tem de ser levada a sério pela Prefeitura. No entanto, ao demonizar as empresas que oferecem mototáxis, Nunes olha exclusivamente para uma parte do problema, sem considerar as causas estruturais que geram a demanda por esse tipo de transporte. Não é esperado que o prefeito da maior cidade do Brasil cometa um erro tão crasso de diagnóstico. A responsabilidade do poder público é garantir que todos os cidadãos tenham acesso a um transporte digno e seguro, e não apenas combater as alternativas que surgem de forma espontânea na iniciativa privada para suprir lacunas de um sistema que, como está claro, não atende às necessidades da população.

O sonegador agradece

O Estado de S. Paulo

Revogação de monitoramento do Pix só beneficia um grupo: o crime organizado

Após forte ruído nas redes sociais, o governo Lula se acovardou e optou por revogar instrução normativa da Receita Federal que ampliava o monitoramento de transações via Pix superiores a R$ 5 mil mensais (para pessoas físicas) e R$ 15 mil (para jurídicas) a fintechs e plataformas de pagamento, como, aliás, já ocorre com os chamados bancos tradicionais.

Com isso, perdeu-se uma oportunidade de atualizar uma regra que já existia antes mesmo da adoção exitosa do Pix, quando transações financeiras eram feitas por meio do hoje descontinuado DOC. “Corre-se o risco de abrir uma fresta em todo o sistema, por exemplo, de controle de lavagem de dinheiro, de fraude”, afirmou Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, à revista Capital Aberto.

Loyola não é voz isolada. Em publicação recente, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) também alertou que, com o recuo do governo, se compromete o combate ao crime organizado, uma vez que os dados de fintechs e plataformas de pagamentos, algumas das quais empresas de fachada a serviço de bandidos de alta periculosidade, ficarão de fora da base de dados da Receita.

É fundamental ressaltar que a maioria das fintechs é séria, tem no Pix um importante aliado na inclusão bancária de milhões de brasileiros, cumpre regras e coopera com os órgãos governamentais para que o sistema financeiro seja cada vez mais transparente e seguro.

Contudo, também há fortes indícios de que organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC) utilizavam fintechs que teriam movimentado bilhões de reais de origem suspeita. Esses dublês de “bancos digitais” dariam aos seus clientes delinquentes uma blindagem contra, por exemplo, bloqueios judiciais.

Investigadores e economistas ouvidos pelo Estadão afirmaram, em novembro passado, que a profusão de casos de fraudes envolvendo fintechs demonstra a necessidade de atualização do ambiente regulatório no qual elas operam. A instrução da Receita, infelizmente revogada, era um importante passo nessa direção.

Atente-se ainda para o fato de que o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Lavagem de Dinheiro. Ao revogar uma medida que ampliava o escopo de combate à sonegação, o País corre o risco de ter sua seriedade na luta contra o crime manchada internacionalmente, algo extremamente contraproducente porque a transnacionalização das organizações criminosas exige cooperação cada vez maior com parceiros externos.

Incapaz de explicar à população que a instrução era importante no combate à sonegação, e que exatamente por isso apenas sonegadores precisariam se preocupar com seus atos ilícitos, o governo, politicamente fraco, preferiu cancelar uma medida absolutamente correta.

Inovação brasileira que é motivo de orgulho nacional, além de interesse internacional, o Pix bate sucessivos recordes no País ano após ano. Apenas em 2024, o volume de transações foi de mais de R$ 26 trilhões, praticamente 2,5 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) de 2023. Quanto mais abrangentes e transparentes forem as regras de monitoramento do Pix, melhor para todos os brasileiros, com exceção dos criminosos.


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