O Globo
O primeiro Oscar, que nunca se esquece, é a demonstração internacional da maturidade de nossa indústria cinematográfica
A primeira vitória do Brasil no Oscar, com
“Ainda estou aqui”, de Walter Salles, como Melhor Filme Internacional, tem
significado político importante para um país que ainda lida com uma recente
tentativa de golpe antidemocrático, por um grupo de militares e civis que
sonhavam abertamente com a volta da ditadura militar.
Retratada no filme com sobriedade e emoção, a figura de uma mulher lutadora, Eunice Paiva, que teve de sobreviver à morte do marido, o ex-deputado Rubens Paiva, e lutou durante anos para ter, pelo menos, a admissão oficial do governo de que ele fora assassinado num quartel do Exército, é o centro de uma aventura que toca a todos, torna-se universal.
Por isso, aliás, a piada do apresentador Conan O’Brien sobre sua mulher desejar que ele sumisse como o personagem do filme só demonstra a alienação de um comediante que, no mínimo, não se preparou para executar bem seu trabalho. A sensibilidade que lhe faltou sobrou aos milhões de espectadores pelas salas de cinema do mundo, de um filme falado em português que impactou cidadãos sensíveis a situações de risco impostas por governos autoritários, sejam de que natureza forem.
Só no Brasil mais de 5 milhões de pessoas se
emocionaram com os fatos de nossa História recente, muitas tomando conhecimento
deles pela primeira vez. Mas o primeiro Oscar, que nunca se esquece, é muito
mais que isso. É a demonstração internacional da maturidade de nossa indústria
cinematográfica, é a reafirmação de que nossa cultura produz obras de arte
atemporais, compreendidas por espectadores de vários países, emocionando-os por
meio de interpretações espetaculares como a de Fernanda Torres, que deveria ter
vencido o Oscar de Melhor Atriz, mas foi tão injustiçada quanto sua mãe, a
formidável Fernanda Montenegro, 25 anos atrás.
Um filme falado em português enfrenta as
mesmas dificuldades que a literatura no nosso idioma, ainda mais fora da
Europa, por isso nunca premiada com um Nobel da Literatura, embora não
faltassem merecedores. Salles tem em seu currículo uma série de grandes filmes,
como “Central do Brasil” e “Diários de motocicleta”, que já ganharam vários
prêmios internacionais. Em “Ainda estou aqui”, parece ter alcançado uma
maturidade artística que o coloca entre os grandes diretores internacionais,
fato reconhecido por muitos, como Martin Scorsese ou Pedro Almodóvar.
Na abordagem de tema tão delicado e
dramático, encontrou o tom certo, evitando torná-la um panfleto anacrônico para
abordar os sentimentos humanos de uma mãe de família em busca da reconstrução,
depois de um terremoto em suas vidas causado pela violência da ditadura
militar.
A dona de casa tornou-se uma ativista
política com dupla missão: descobrir o que acontecera com seu marido e
trabalhar pelos direitos humanos e pelos indígenas no Brasil. Eunice tornou-se
o símbolo da resistência, formou-se em Direito para melhor basear sua luta pelo
paradeiro do marido. Salles, a partir daquela mulher, traduziu com delicadeza a
humanidade da sua luta e trouxe para o presente a lição de que é preciso
resistir ao autoritarismo, de que é necessário ter uma vontade inquebrantável
quando estão em jogo valores como a democracia.
No momento em que o novo presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump, demonstra na prática o que um governo autoritário
pode fazer para destruir uma Nação solidária, que era exemplo de democracia
para o mundo, o filme de Salles traz uma mensagem de advertência quanto às
consequências de querer basear na força a vitória de seus pensamentos, sem uma
visão humanista da convivência, especialmente num mundo em transformação, sob
perigo iminente de destruição. Um país capaz de produzir um filme como “Ainda
estou aqui” está pulsante.
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