terça-feira, 4 de março de 2025

Direita, celebre 'Ainda Estou Aqui'! - Joel Pinheiro da Fonseca

Folha de S. Paulo

O primeiro Oscar para um filme brasileiro produziu a catarse nacional, mas infelizmente nem todo mundo entrou na festa

primeiro Oscar para um filme brasileiro produziu a catarse nacional. Infelizmente, nem todo mundo entrou na festa. Muita gente da direita brasileira não celebrou. Se falam do filme, é para fazer alguma ironia ou crítica da política atual. Por quê?

O teor de muitas dessas manifestações é o de comparar a ditadura militar à suposta ditadura atual: a do Supremo. É um paralelo fraco, por mais que os inquéritos do Supremo possam e devam ser criticados. Não há semelhança entre as pessoas presas por tentarem um golpe de Estado que derrubaria a democracia —com penas, sim, excessivamente longas— com a prisão, tortura e assassinato de pessoas que lutavam pela democracia.

Os golpistas de hoje têm julgamentos públicos e são defendidos por advogados —além de podermos falar livremente deles na imprensa e nas redes. Os democratas dos anos 1970 eram censurados, torturados e mortos.

E mesmo aceitando o paralelo, o repúdio ao filme não faz sentido. Se o que vivemos é digno de protesto, então a ditadura militar —que foi muito além do que vivemos hoje— o é ainda mais. Celebremos, portanto, "Ainda Estou Aqui"!

O real motivo para tanta gente torcer o nariz para Walter Salles e Fernanda Torres —e que também é o motivo de defenderem com unhas e dentes os golpistas de 2022 e 23— é outro, e seu nome é Bolsonaro.

Bolsonaro fez da sua carreira uma luta pela memória do regime militar. Tinha no gabinete de deputado um cartaz com a frase "quem procura osso é cachorro", sobre os esforços de se investigar os crimes da ditadura. Cuspiu no busto de Rubens Paiva no Congresso. Quando presidente, conspirou e tentou persuadir generais a embarcarem em seu plano de golpe de Estado.

É por causa de Bolsonaro que governadores como Ratinho Jr, Romeu Zema e Tarcísio de Freitas silenciaram sobre o Oscar brasileiro. Outros governadores de direita ou centro-direita —como Ronaldo Caiado e Eduardo Leite— postaram homenagens. Mostram sua independência. Enquanto Bolsonaro for a grande referência da direita, ela não poderá ter a democracia como um valor inequívoco seu.

O próprio Walter Salles, é verdade, esticou a corda da polarização ao redor do filme ao dizer, numa entrevista, que "...durante quatro anos, o país virou para a extrema direita e nunca teríamos tido a possibilidade de filmar durante esse período". Não explicou, contudo, qual ato do governo Bolsonaro inviabilizaria a filmagem.

A história que Salles contou com maestria é muito maior do que a disputa eleitoral brasileira. Os valores que ele traz deveriam ser universais. De um lado, sequestro, tortura e assassinato extrajudiciais, efetuados por agentes não fardados e sem qualquer registro burocrático. Do outro, Eunice Paiva, enfrentando o regime e buscando a verdade, não com luta armada e atentados, mas por meio da educação e do ativismo. Tudo isso, lembremos, em defesa da família. Tem que se esforçar muito para ver problema.

Num mundo em que "tudo é política" —e política partidária—, você não pode nem ir ao cinema impunemente. Há alguns anos atrás, havia quem se recusasse a torcer pela Seleção de Neymar. Arte, talento, orgulho nacional e mesmo valores universais são sacrificados no altar da disputa política. Não sejamos assim. Direita, ouse celebrar o bom e o belo onde ele estiver. Aí, sim, você estará ajudando a civilização.

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