Oscar inédito de Walter Salles traz estímulo à arte
O Globo
Reconhecimento à excelência técnica, prêmio
para ‘Ainda estou aqui’ é um marco no atual momento histórico
O Oscar inédito
do diretor Walter
Salles, na categoria Melhor Filme Internacional, representa mais que
reconhecimento à competência técnica de “Ainda estou
aqui”, relato da busca da viúva Eunice Paiva por seu marido, Rubens Paiva,
assassinado nos porões da ditadura militar em 1971. Trata-se de estímulo a um
dos maiores mercados de audiovisual do mundo e de marco no atual momento
histórico. Não foi por acaso que Salles agradeceu em nome do cinema brasileiro
e dedicou a estatueta às atrizes que vivem Eunice — Fernanda Torres e Fernanda
Montenegro —, além de à própria Eunice.
O número de indicações ao Oscar é prova da excelência do trabalho, produção de VideoFilmes, RT Features e Mact Productions, em coprodução com Globoplay, ARTE France e Conspiração. Além de concorrer com outros filmes estrangeiros, “Ainda estou aqui” foi finalista na categoria principal — Melhor Filme —, e Fernanda Torres disputou o Oscar de Melhor Atriz. Antes de ser aclamada em Hollywood, a história da família Paiva já era sucesso nas telas dentro e fora do Brasil. Aqui, o filme foi visto por mais de 5 milhões. No Reino Unido e na Irlanda, fez a melhor estreia de um filme latino-americano, arrecadando R$ 3,5 milhões no primeiro fim de semana. Na França, foi lançado no mês passado em 475 salas. Em Portugal, conquistou a maior audiência entre 16 de janeiro e 9 de fevereiro. Nos Estados Unidos, está em cartaz em 762 cinemas. Com a premiação, é certo que aumentará o impacto do cinema brasileiro no mercado doméstico e também no exterior.
O primeiro filme brasileiro indicado ao Oscar
foi “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, também como filme estrangeiro,
em 1963. Mais de três décadas depois, houve outros três indicados na categoria:
“O quatrilho”, dirigido por Fábio Barreto (1996); “O que é isso, companheiro?”,
de Bruno Barreto (1998); e “Central do Brasil”, também de Salles, com Fernanda
Montenegro indicada a Melhor Atriz (1999). Outros dois brasileiros foram
indicados a Melhor Diretor: Hector Babenco, por “O beijo da mulher-aranha”
(1986), e Fernando Meirelles, por “Cidade de Deus” (2004).
O Oscar de Salles é resultado, portanto, de
longa trajetória, alicerçada em escolas de ponta em artes cênicas e
audiovisuais, além de produções frequentes para cinema, teatro e televisão. A
tradição em telenovelas, sozinha, faz do Brasil o maior ganhador do prêmio Emmy
Internacional nessa categoria (sete para a TV Globo desde 2009).
Para além do estímulo ao audiovisual nacional
— responsável por quase 90 mil empregos formais —, o Oscar de Salles tem
inegável relevância histórica. Não é coincidência que um filme sobre ditadura
seja reconhecido num momento em que a democracia sofre ameaças em todo o mundo.
Aqui no Brasil, um ex-presidente foi denunciado há pouco, sob acusação de ter
liderado uma tentativa de golpe de Estado.
Com o poder singular da arte, “Ainda estou
aqui” exibe de modo pungente o horror da tirania. Ex-deputado, Rubens Paiva foi
levado da própria casa por agentes do Estado sem mandado judicial, brutalmente
torturado e assassinado. A luta de Eunice não se resumiu a criar e sustentar os
cinco filhos. Culminou quando as autoridades assumiram a responsabilidade pelo
assassinato do marido. Seu exemplo contribui para o Brasil lidar com um risco
que — tristemente — ainda está aqui.
Repasse de ‘custo climático’ à conta de luz
reflete resistência a cortar subsídios
O Globo
Setor de energia é bem-sucedido ao conquistar
benefícios que, uma vez concedidos, são difíceis de revogar
A conta de luz subirá em razão da permissão
dada pela Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel) às distribuidoras para que repassem ao consumidor o custo decorrente de
danos causados por eventos climáticos extremos e dos investimentos feitos para
tornar o sistema mais seguro. Os técnicos reconhecem que o ideal teria sido
compensar o encarecimento dos custos pela redução dos inúmeros e pouco
transparentes subsídios. Mas falta vontade ao governo para tratar do assunto. A
decisão pode até ser justificável tecnicamente, mas não há como escapar à
conclusão de que é sempre mais fácil transferir as despesas ao consumidor.
A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE),
em que estão os subsídios concedidos ao setor, foi criada em 2002 para ser
encerrada em 2027. Tinha como objetivo garantir a universalização do acesso à
energia e distribuir de forma racional estímulos a fontes renováveis. Em 2013,
a CDE deixou de ter prazo de vigência e criaram-se mais subsídios, inclusive ao
carvão mineral, o pior emissor de gases de efeito estufa. Ao aprovar o Projeto
de Lei para regular a geração de energia eólica em alto-mar, o Congresso manteve
ou criou toda sorte de subsídio. Felizmente, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva vetou os “jabutis” introduzidos no texto. Mas persiste o risco de que os
congressistas derrubem os vetos — o que seria equivalente a um aumento de 9%
nas contas de luz por 25 anos.
O aumento na produção de energia solar e
eólica é significativo, principalmente no Nordeste. No ano passado, a
participação dessas duas fontes na matriz renovável chegou a 30%, segundo
Alexandre Street, do Departamento de Engenharia Elétrica da PUC-Rio. Para ele,
a geração de energia solar e eólica já chegou a um ponto de maturidade em que é
necessária a revisão do subsídio. Mas no Brasil continua valendo o princípio
segundo o qual, dado um subsídio, é difícil revogá-lo.
Não se trata de questionar a cobrança de
tarifas diferenciadas para famílias de baixa renda, a irrigação de plantações
ou a geração de energia nos confins da Amazônia. Mas é fundamental discutir e
avaliar os incentivos dados pelo governo num momento em que o país, conhecido
por suas hidrelétricas, vem diversificando sua matriz energética, nem sempre no
sentido das fontes de geração renováveis, como solar e eólica.
Também é de interesse do consumidor a
regulação das distribuidoras no que diz respeito aos eventos climáticos
extremos. Os contratos precisam estabelecer deveres e direitos de maneira
equilibrada, com o objetivo de garantir boa prestação de serviço. Prova de que
isso nem sempre é feito a contento é a relação atribulada entre a Enel de São
Paulo e a Aneel. A qualquer chuva mais forte na Região Metropolitana, há
apagões. Apesar de multada em R$ 320,8 milhões entre 2018 e 2023, a Enel pagou
até hoje apenas R$ 59,1 milhões, alegando questões contratuais. O caso precisa
ser estudado para melhorar os futuros contratos. No fundo, a procrastinação do
pagamento das multas acaba funcionando como subsídio velado.
Oscar para 'Ainda estou aqui' tem significado
especial
Folha de S. Paulo
Prêmio para o filme de Walter Salles com
Fernanda Torres vem em momento no qual ameaças à democracia cruzam fronteiras
A premiação de "Ainda
Estou Aqui" com o Oscar de
melhor filme internacional marca uma data histórica para o cinema brasileiro.
É fato que, ao longo de sua trajetória, a
produção cinematográfica do país obteve reconhecimento e láureas em festivais
importantes, como a Palma de Ouro em Cannes, em 1962, por "O Pagador de
Promessas".
O mesmo festival veio a consagrar Glauber
Rocha, em 1969, pela direção de "O Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro"; e, anos depois, em 1986, uma jovem atriz, chamada Fernanda
Torres, então com 19 anos, venceu pelo seu papel em "Eu Sei que Vou Te
Amar", de Arnaldo Jabor.
Indicações e galardões foram reconhecidos na
própria disputa do Oscar, que consagrou "Orfeu Negro", em 1960, como
melhor filme internacional. Baseado em musical de Vinicius de Moraes e Tom
Jobim e filmado no Rio com atores brasileiros, acabou considerada obra
francesa, sob direção de Marcel Camus.
É inegável, entretanto, que o
troféu concedido a "Ainda Estou Aqui" pela Academia de Artes
e Ciências Cinematográficas de Hollywood revestiu-se
de significados especiais. Trata-se de uma produção integralmente nacional,
inspirada no livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, que oferece uma trama
ambientada em período relevante da história social e política do país.
Com engenho e arte, o longa dirigido
por Walter
Salles consegue apresentar de modo arrebatador a comovente história de
Eunice Paiva e de sua família em busca de um desenlace para o dramático
desaparecimento do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e
assassinado pela ditadura militar em
circunstâncias jamais esclarecidas oficialmente.
Bem recebido no Festival de Veneza, onde
estreou e ganhou o prêmio de melhor roteiro, o filme logo cativou as plateias
brasileiras e passou a merecer atenção internacional. Num ambiente extremamente
competitivo, no qual o cinema brasileiro ocupa lugar periférico, as virtudes de
"Ainda Estou Aqui", entre as quais a notável atuação de Fernanda
Torres, se impuseram.
A
vitória da atriz no Globo de Ouro e as indicações ao Oscar em três
categorias —melhor filme, melhor filme internacional e melhor performance
feminina— somaram-se ao expressivo e bem-vindo reencontro do Brasil com seu
cinema.
Em que pesem desprezíveis rixas da parte de
saudosistas do autoritarismo, o exemplo e a resiliência de Eunice Paiva ganham
projeção num momento em que as ameaças à democracia cruzam fronteiras e fazem
do mundo um lugar menos seguro para se viver.
Ao reavivar a memória da opressão, do
desrespeito aos direitos, da violência do Estado e do desprezo pela vida,
traços que infelizmente ainda estão aqui, o filme nos deixa um legado essencial
e valioso. Nada mais justo e significativo que o triunfo tenha sido comemorado
com paixão e alegria neste já histórico Carnaval.
Ao levar Gleisi para o governo, Lula dá
sinais preocupantes
Folha de S. Paulo
Nova ministra das Relações Institucionais já
teve atritos com políticos proeminentes e é crítica ao controle de gastos
Gleisi
Hoffmann deixará a presidência do PT para se
tornar ministra das Relações Institucionais, responsável
pelas articulações com parlamentares e partidos. É também provável que
coordene alianças para as eleições de 2026.
Aguerrida defensora da linha gastadora
petista, Gleisi criticou o moderado projeto de contenção de despesas do
ministro Fernando
Haddad (Fazenda), que
chamava de "austericídio", e combateu a política monetária.
É fiel ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva
e esforçou-se para dar ao PT o maior número de ministérios, mesmo o governo
sendo minoritário no Congresso
Nacional.
É duvidoso se Gleisi terá sucesso na
transição do posto de general para diplomata. De certo é que, ao nomeá-la, o
presidente da República dá sinais inquietantes.
Passou a mensagem de que é menor a
possibilidade de ampliação do diálogo com outros partidos, correntes de
pensamento e setores sociais que não aqueles mais fiéis a ele mesmo e ao
ideário petista. Reafirmou também que pode não adotar a política de moderação
de gastos e tímidas reformas fiscais de Haddad.
O ministro da Fazenda perdeu, de resto, raro
aliado no Planalto, Alexandre Padilha, que deixou o cargo para ser ministro da
Saúde.
É outro indício de que Haddad tem apoio
mínimo para seu programa, o que ficou evidente com a mudança da meta de saldo
primário em abril de 2024, a desidratação do plano fiscal em novembro, e as
afirmações de Lula, em janeiro deste ano, que sinalizam poucas chances de
melhoria na gestão das contas públicas.
Firme, combativa e com histórico de
desavenças com figuras e partidos relevantes do Congresso, Gleisi deverá
negociar a aprovação de projetos que o Planalto julga vitais para a recuperação
de sua popularidade —o maior deles é o da isenção do Imposto de
Renda para parte dos assalariados.
Abrindo mão dessa receita, o governo terá de
tributar rendimentos do topo da pirâmide, o que desagrada o Congresso. Quanto
maior a proximidade de 2026 e pior a avaliação da atual gestão, será menos
provável que Lula conte com a boa vontade de deputados e senadores.
Para conseguir obter sucesso, Gleisi teria de
renegar a defesa obstinada dos interesses do petismo, desfazer a crença de que
não vai solapar o que resta de credibilidade da política econômica e conquistar
votos para o programa de incremento da posição de Lula nas pesquisas em um
ambiente indócil no Legislativo.
Dado o seu histórico, porém, há risco de
converter-se em mais uma má escolha de Lula.
Um Oscar para a coragem
O Estado de S. Paulo
Prêmio americano a ‘Ainda Estou Aqui’ mostra
que, em tempos de elogio à truculência na política, o tema do filme – os
efeitos do autoritarismo sobre uma família comum – é universal
Já conquistamos cinco Copas do Mundo, mas
nunca tivemos um Prêmio Nobel e até anteontem jamais havíamos levado um Oscar.
De certa forma, isso nos resumia: um país bom de bola, mas ruim do resto. Não
mais: o Brasil finalmente entrou para o time dos laureados com o principal
prêmio do cinema mundial, ganhando como melhor filme de língua não inglesa com
a produção Ainda Estou Aqui.
Isso não significa, é claro, que de uma hora
para outra o cinema brasileiro tenha se tornado uma potência capaz de ombrear
com a indústria de países com muito mais tradição nessa arte. No entanto, o
prêmio para Ainda Estou Aqui aponta o amadurecimento dos artistas e
profissionais brasileiros nesta arte que comove e diverte o mundo há mais de um
século. É muito provável que essa vitória atraia mais curiosidade no exterior
sobre o cinema brasileiro e acalente os sonhos dos jovens diretores daqui.
Dito isso, mesmo que não tivesse sido o
primeiro filme brasileiro a conquistar um Oscar, Ainda Estou Aqui tem
um significado extraordinário para o País, como poucas obras de arte tiveram em
nossa história. À medida que o filme passou a ganhar visibilidade, críticas
positivas e prêmios no exterior, instalou-se no País um sentimento que só
costumamos ver em época de Copas do Mundo.
Quando a atriz espanhola Penélope Cruz
anunciou o Oscar para o longa dirigido por Walter Salles, o Brasil explodiu em
celebração. Tanto entusiasmo não é exagero. Como destacou Fernanda Torres,
atriz principal do filme, o fato de uma produção falada em português ter
recebido três indicações ao Oscar – melhor filme, melhor atriz e melhor filme
estrangeiro – já era um feito.
Ancorado na atuação impecável de Fernanda
Torres, agora um talento internacionalmente reconhecido, o filme conseguiu, com
sutileza e sobriedade, retratar como o regime militar brasileiro afetou a vida
de inúmeras famílias. Com isso, a produção transformou um tema local em algo
universal, especialmente diante do avanço global de uma ideologia que faz
elogio da truculência e do autoritarismo, inclusive nos Estados Unidos. Se
alguém quer saber o que acontece às pessoas comuns quando liberdades básicas
são sacrificadas no altar do autoritarismo, é só ver no que se transformou a
família de Eunice Paiva, a personagem central de Ainda Estou Aqui, graças
à ditadura.
Assim, apresentar o estrago que o período de
trevas provocou na vida de famílias brasileiras ao mundo e a uma geração mais
jovem de brasileiros, para quem a ditadura militar só está nos livros de
História, é o principal dos muitos méritos de Ainda Estou Aqui.
À época em que foi covardemente retirado de
casa para nunca mais voltar, o ex-deputado federal Rubens Paiva nem político
era mais. Ocupava-se apenas de seu trabalho e de sua família. Mas, para o
governo militar, Paiva era um subversivo perigoso porque mantinha contato com
brasileiros forçados ao exílio.
Por esse motivo, em 1971 Paiva foi detido,
torturado e assassinado nos porões da ditadura, deixando sozinhos, e por muito
tempo sem respostas, sua mulher, Eunice Paiva, e seus filhos.
Tornada viúva por ação direta e criminosa do
Estado brasileiro de então, a mãe de cinco filhos teve de se reinventar como
chefe de família e profissional. Mesmo com tantas responsabilidades, ela jamais
se conformou e dedicou parte significativa de sua vida a fazer com que o Estado
brasileiro reconhecesse que matou Rubens Paiva, o que só ocorreu em 1996.
Ainda Estou Aqui, sucesso de público e
crítica no Brasil, só não agradou aqueles que, sob a liderança de Jair
Bolsonaro, ainda nutrem nostalgia do regime militar. “Eu não tenho tempo de ver
filme”, declarou o ex-presidente, que, recorde-se, cuspiu num busto de Rubens
Paiva que estava sendo inaugurado na Câmara, em 2014, diante da atônita família
do ex-deputado.
Ao decidir narrar a história dos Paiva na
atual conjuntura, portanto, o diretor Walter Salles foi particularmente
corajoso, sobretudo porque deu visibilidade à aguerrida Eunice, que lutou para
preservar sua família e perseverou em busca de justiça. Só isso já é digno de
aplausos. Nem precisava de Oscar.
O copo meio vazio da educação
O Estado de S. Paulo
Censo do setor mostra que cresceu o número de
brasileiros com curso superior, mas o avanço é marcado por desigualdades, que
têm a ver com o histórico descaso com a educação básica
A proporção de brasileiros acima de 25 anos
com curso superior cresceu 2,7 vezes em pouco mais de 20 anos, revelam novos
dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
É inegável que o avanço da escolaridade em um
país ainda profundamente marcado pela desigualdade extrema é positivo, mas a
leitura do Censo exige cautela.
Primeiro, porque, embora o porcentual de
brasileiros com curso superior tenha subido de 6,8% em 2000 para 18,4% em 2022,
o número de pessoas com um diploma de faculdade ainda é bem menor do que a
média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), de 48%.
Além disso, o maior número de brasileiros com
formação superior coincide com o aumento vertiginoso de cursos a distância
(EAD). Dados do Ministério da Educação mostram que os matriculados nessa
modalidade saltaram de 1.682 alunos em 2000 para mais de 4 milhões em 2022.
Embora o EAD permita que milhões de
brasileiros tenham acesso ao ensino superior, por razões que vão do custo menor
à indisponibilidade de faculdades em determinadas regiões, há preocupação com a
qualidade de alguns desses cursos.
Longe de demonizar o EAD, é preciso garantir
que a modalidade realmente colabore para a formação de seus estudantes, que, em
geral, vêm das camadas mais pobres, que têm recursos escassos para investir em
ensino superior.
Na era em que parte não desprezível da
população questiona a relevância de se fazer uma faculdade – o que nem sempre
garante um lugar ao Sol e boa remuneração no mercado de trabalho –, faz-se
ainda mais necessário que a qualidade do ensino, presencial ou online, seja
aprimorada.
O Brasil, que historicamente investe mais no
ensino superior do que na educação básica, ainda amarga índices de
produtividade baixos quando comparado a países desenvolvidos. Logo, mais que
simplesmente aumentar o número de diplomados, convém que o País focalize suas
políticas públicas em um ensino realmente efetivo.
Por fim, as desigualdades históricas da
sociedade brasileira ficam evidentes quando se observam os recortes sociais e
raciais da educação radiografados pelo Censo 2022.
De um modo geral, o número de brancos, pardos
e pretos com ensino superior completo aumentou, mas os cursos considerados de
“elite”, como Medicina e Engenharia, formam majoritariamente brancos: 75,5% no
caso do primeiro, e 66,4% no segundo.
Infelizmente, enquanto o País seguir
negligenciando a educação na primeira infância, os avanços no ensino superior
serão apenas um copo meio vazio. O acesso à educação nos primeiros anos de
idade (creche e pré-escola) é fundamental tanto para o aprendizado futuro como
para o progresso econômico das nações.
O Censo mostra que a taxa de frequência
escolar bruta de brasileiros de 0 a 3 anos era de 33,9% em 2022, bastante
abaixo da meta de 50% estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (PNE). Já
entre as crianças de 4 e 5 anos, a frequência escolar era de 86,7% – para essa
faixa etária, a meta do PNE é de 100%.
Essa baixa frequência compromete todo o
desenvolvimento escolar dos brasileiros, em especial os mais pobres, que, por
razões históricas, concentram mais negros e pardos.
“No grupo dos mais envelhecidos, o acesso à
educação foi mais difícil na juventude, e isso ainda tem um peso considerável
na porcentagem final (do ensino superior)”, explicou Bruno Mandelli,
pesquisador do IBGE.
Em 2021, o gasto médio anual do Brasil com
alunos da educação básica foi de US$ 3.181, abaixo da média dos países da OCDE
(US$ 11.736), revelou a organização em 2024. No ensino superior, o gasto
brasileiro (US$ 13.569) é bem mais próximo ao da OCDE (US$ 17.138).
Ou seja, gasta-se muito em ensino superior,
onde se concentram os brasileiros com melhor poder aquisitivo, e pouco em
educação básica, onde estão todas as crianças do País, ricas e pobres. Essa
opção, na prática, resulta em transferência de renda para os mais ricos e em
formação precária de quem não tem dinheiro e não poderá disputar as melhores
vagas, seja nas universidades, seja no mercado de trabalho. É preciso, de uma
vez por todas, mudar esse cenário.
Imprudência ilimitada
O Estado de S. Paulo
Aumentar crédito a municípios elevando teto
do limite bancário desafia o bom senso
A avidez com que o governo busca soluções de
efeito imediato para a abalada popularidade do presidente Lula da Silva desafia
os limites do bom senso. Entre as medidas de ampliação da oferta de crédito
preparadas pelo Planalto está o aumento do limite prudencial de empréstimos
bancários a municípios, assim como a ampliação do teto que os bancos de
desenvolvimento têm de respeitar na emissão de Letras de Crédito de
Desenvolvimento (LCD). Trata-se de medidas bastante temerárias.
Segundo reportagem recente do Estadão, as
articulações estão centralizadas na Associação Brasileira de Desenvolvimento
(ABDE), que tem instituições públicas como a Caixa, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco de Desenvolvimento de
Minas Gerais (BDMG) como associados. A demanda para elevar a oferta de
financiamento a municípios é antiga e, sob o ponto de vista político, vem a
calhar para o governo federal cativar prefeitos, ainda mais levando em conta a
perda de espaço do Executivo na distribuição de recursos para os parlamentares
e suas inúmeras emendas.
Em operações de crédito para entes públicos,
os bancos podem aportar, no máximo, 45% de seu patrimônio de referência, como é
chamado o capital de que a instituição dispõe para cobrir eventuais riscos. É
uma regra de prudência bancária estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional –
formado pelo Banco Central e Ministérios da Fazenda e do Planejamento – com o
objetivo de garantir a solvência da instituição e a estabilidade do sistema
financeiro como um todo. A proposta em análise é dobrar esse limite para até
90%.
Comprometer quase todo o patrimônio de
referência com qualquer tipo de operação, em qualquer segmento, é um excesso de
risco que bancos privados, por exemplo, jamais assumiriam. Já bancos públicos,
como a Caixa, e bancos de desenvolvimento, como o BNDES e bancos regionais,
ficam mais suscetíveis a decisões do governo. E é aí que mora o perigo. Até
porque as operações menos arriscadas são as que têm garantia da União. Ou seja,
em caso de inadimplência, o erário assume o débito, o que significa dizer que,
de uma forma ou de outra, a conta acaba chegando ao contribuinte.
Defensores da proposta alegam que o risco de
inadimplência é baixo, mas um fato que não pode ser ignorado é que metade dos
mais de 5 mil municípios brasileiros estava no vermelho em 2023, com déficit
total em torno de R$ 18 bilhões, de acordo com levantamento da Confederação
Nacional dos Municípios. Equacionar dívidas é mais urgente do que elevar
crédito, mas, ao que parece, a aposta central do governo para solucionar todo e
qualquer problema é injetar recursos na economia, o que, nesse caso específico,
tende a impactar bancos públicos.
Em setembro do ano passado, o Conselho Monetário Nacional aprovou a ampliação em R$ 6 bilhões dos limites para contratações de operações de crédito com garantia da União por Estados e municípios mirando em financiamentos ao Novo PAC e parcerias público-privadas. Elevar ainda mais a vazão de crédito seria insensatez.
Democracia, ainda estou aqui
Correio Braziliense
Ainda Estou Aqui é mais do que um belíssimo e irretocável filme. Antes de tudo é um alerta para que as instituições nunca mais se divorciem da democracia. Trata-se de um regime que "está aqui", conquistado a duras penas, com perdas irreparáveis
"Vamos sorrir, sim". Ainda Estou
Aqui conquistou o maior prêmio do cinema mundial, o Oscar, na categoria de
melhor filme estrangeiro, com a obra do diretor Walter Salles. Um prêmio, até
então, inédito para a cinematografia nacional, que encheu os brasileiros de
orgulho e alegria: "Vamos sorrir, sim". O Brasil é um país rico de
talentos, nas mais diversas expressões da arte e da cultura. Em pleno carnaval,
o país parou e abriu alas para assistir ao momento histórico que ocorreu no teatro
Dolby Theatre, na cidade de Los Angeles, na Califórnia.
A torcida para que Fernanda Torres ganhasse o
prêmio, como melhor atriz, era da maioria dos brasileiros. Mas ela pressentiu
que não traria a estatueta. Em um gesto de sororidade, ela torceu pela atriz
norte-americana Demi Moore, protagonista do filme A Substância, e que há 40
anos, como atriz de cinema, nunca foi premiada. Torres desejou, e foi atendida,
que o Oscar fosse dado ao filme, pelo trabalho de Walter Salles, à Eunice
Paiva, principal personagem, por ela interpretada, à família Paiva e a Marcelo
Rubens Paiva, autor do livro que deu nome ao filme e a todos que participaram
da produção.
O tema de Ainda Estou Aqui chega em momento
em que o Brasil está dividido entre a democracia, como estabelecida pela
Constituição Cidadã de 1988, e o retrocesso ao período mais obscuro e letal da
história republicana, ao longo de 21 anos (1964-1985). O legado da
ditadura foi terrível com supressão das liberdades individuais, tortura e morte
aos não alinhados à brutalidade do regime, aos defensores da democracia, e
social e economicamente estagnado. Em 1971, o ex-deputado Rubens Paiva foi uma
das vítimas do regime e seu corpo nunca foi encontrado.
O filme ganha espaço no debate político, logo
depois do terrível episódio de 8 de janeiro de 2023, quando ocorreu o
atentado que visava amordaçar a democracia e ressuscitar a ditadura militar.
Ainda Estou Aqui provocou reflexão a mais de 5 milhões de pessoas que lhe
assistiram, lotando as salas de cinema. O mais interessante é que Ainda Estou
Aqui atraiu parcela expressiva de jovens, sem conhecimento real da ditadura, um
regime de mãos de ferro e impiedoso.
Ainda Estou Aqui mexeu com a legislação
brasileira. Hoje, o atestado de óbito dos mortos e desaparecidos reconhece
que essas pessoas foram mortas pela violência do Estado — algo até então
inimaginável — resultado da luta de Eunice Paiva. Antes mesmo do filme, o
Ministério Público havia retirado dos escaninhos do passado processos abertos
por familiares que tiveram seus entes queridos desaparecidos, torturados e
mortos, cujos corpos nunca foram encontrados. O fato mais marcante, na década
de 1970, foi a ação do Exército na Guerrilha do Araguaia, em que a oposição se
organizou para o enfrentamento da ditadura. Mais de 60 pessoas foram mortas e
os corpos, nunca encontrados.
Diante da provocação do MP, o Supremo
Tribunal Federal reflete sobre a "ampla, geral e irrestrita anistia"
dada a civis e militares que estiveram envolvidos com a tortura, morte e
desaparecimento das vítimas da ditadura, por meio da Lei nº 6.683/1979,
aprovada durante o regime militar. Na prática, a lei garantiu a impunidade a
quem cometeu crimes políticos no período, e se tornou um marco para a
redemocratização do país. A revisão poderá dar novo destino aos autores de
atos, até então, tidos como fatos consumados.
Ainda Estou Aqui é mais do que um belíssimo e irretocável filme. Antes de tudo, é um alerta para que as instituições nunca mais se divorciem da democracia. Trata-se de um regime que "está aqui", conquistado a duras penas, com perdas irreparáveis. Cabe a todos os brasileiros cultivá-lo para sempre e torná-lo melhor. Para isso, é preciso escrever um novo roteiro que valoriza e respeita a vida, promove igualdade, equidade social e econômica, rechaça todas as formas de preconceito e de violência entre os iguais.
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