terça-feira, 4 de março de 2025

Meio século numa noite - Míriam Leitão

O Globo

Não esquecer foi a grande virtude do Brasil. Tornar a história conhecida do mundo foi o maior prêmio que o filme deu a nós e à democracia brasileira

Entre a noite em que Walter Salles recebeu o Oscar, em Los Angeles, e o dia, no Rio de Janeiro, em que Rubens Paiva foi sequestrado pela ditadura militar do seio da sua família, passaram-se 54 anos, um mês e dez dias. Nesse tempo, Eunice e seus cinco filhos enfrentaram tudo à espera do corpo que não veio. Hoje o país está imerso nessa história como se ela tivesse acontecido ontem. Não esquecer foi a grande virtude do Brasil. Tornar a história conhecida do mundo foi o maior prêmio que o filme deu a nós e à democracia brasileira. A estatueta de “Ainda estou aqui” chega no momento exato em que precisamos dela.

Assisti à cerimônia do Oscar com minhas netas mais novas, Manuela, 13, e Isabel, 11. Quando Rubens Paiva morreu, o pai delas, Vladimir, não havia nascido. Elas viram o filme, falam com intimidade sobre Eunice, Rubens e seus filhos, como se os conhecessem. O fio que trouxe a história até nós foi tecido, primeiramente, pelas mãos de Eunice. Depois, pela literatura de Marcelo Rubens Paiva. Por fim, pelo cinema brasileiro. Mais de cinco milhões de pessoas viram o filme, incontáveis famílias conversaram sobre esse tema nos seus encontros. Isso não é pouco num país em que o desmonte da memória é uma estratégia para escapar dos temas incômodos.

Depois do seu breve e discreto discurso, em que jogou luz sobre Eunice e as Fernandas, Walter Salles, na sala de imprensa, alertou para a fragilidade da democracia, “tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos”. E foi ao ponto central. “Vivemos um momento em que a memória está sendo apagada, como um projeto de poder, então criar memória é extremamente importante.”

Fernanda Torres não ganhou o Oscar de melhor atriz e, das seis indicadas, ela é a melhor. A história exigia uma interpretação com sensibilidade e maestria técnica. Ela construiu a personagem com delicadeza. Neste tempo em que acompanhou a caravana “Ainda Estou Aqui” até o palco do Dolby Theater, o Brasil esteve em diálogo constante com Fernanda Torres. Ela conta que a mãe, a monumental Fernanda Montenegro, a orientou sobre como interpretar tragédias gregas. Com mais intensidade do que desespero, porque o sofrimento será longo. Foi o que ela fez na sua Eunice. “É uma família normal, mas enfrentando algo como Antígona, algo do tamanho de um destino grego, uma tragédia grega”, disse ela em uma de suas entrevistas.

Fernanda Torres volta ao Brasil coberta de glória após ter sido, como ela definiu, “abduzida por uma nave espacial para uma realidade paralela”. Ela fez por merecer nosso amor. Moveu-se no palco do mundo com uma naturalidade que nos orgulhou. Não se deslumbrou, não esqueceu a personagem e sempre lembrou do seu país. Numa de suas melhores entrevistas, disse que o Brasil tem pena de que o mundo não nos conheça. Nas ruas desse carnaval, o espírito lúdico e irreverente usou a Fernanda Torres como seu principal motivo para brincar.

Isso não conflita com a carga emocional da história contada no filme. Foram muitos os mortos e desaparecidos durante a ditadura militar. Ulysses Guimarães, no momento constituinte da democracia, escolheu Rubens Paiva como o símbolo da sociedade que venceu os facínoras.

A Lei da Anistia pela qual Eunice lutou nos trouxe de volta quem fazia falta ao país, mas foi envenenada pela imposição da impunidade dos criminosos. A luta pelo direito dos povos indígenas ganhou musculatura com a sua militância jurídica e política, mas requer cada vez mais vigilância.

“O nome dela é Eunice Paiva”, disse Walter Salles ao receber o prêmio visto por um bilhão de pessoas. Como é forte essa história. O marido é preso e seu corpo desaparece por ação do governo. Eunice volta para a faculdade, se forma em Direito, educa os filhos, se une às lutas do seu povo, espera 25 anos por uma certidão de óbito, mantém acesa para o país a memória do marido até que a sua memória se esvai. Seu filho, atingido por um acidente que o deixa numa cadeira de rodas, resgata toda a história com a sua envolvente literatura. O cinema brasileiro leva o drama às telas no exato momento em que o horror volta a rondar o país. Selton Mello, que dá vida ao personagem cujo corpo foi sonegado à família — de novo a tragédia grega nos lembra do direito sagrado de as famílias enterrarem seus mortos — disse que entendeu nessa caminhada que o filme era o “corpo de Rubens Paiva”. Como disse Fernanda Torres ao receber o Globo de Ouro: “Que história, Walter!”.

 

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