sábado, 26 de abril de 2025

Bizarrices - Eduardo Affonso

O Globo

Como se sentirão os trans ao deparar com os adjetivos transitório e intransigente ou com o substantivo trânsfuga?

É pena que o macarthismo linguístico esteja perdendo força, e a sanha censória dos puros de coração (e frágeis de cérebro) vá se consolidando como apenas mais uma daquelas esquisitices que volta e meia assolam a Humanidade, deixando como legado um rastro de vergonha alheia. Coisas como o mullet, as ombreiras, a calça saruel, a gravata com estampa de personagem de desenho animado, os Crocs, o bigodinho fino, a palavra “presidenta” — e a patrulha woke.

Quase nada é tão ruim que não possa piorar: a barba desenhada dos cantores sertanejos, os dentes fosforescentes das celebridades, os atuais três Poderes da República. Mas algumas coisas ainda tinham fôlego para degringolar (e nos divertir) um pouco mais.

Uma delas é a santa inquisição vocabular. Com universidades e ministérios públicos fornecendo lenha e gasolina, arderam em praça pública quaisquer expressões que — com razão ou, principalmente, sem razão nenhuma — evocassem racismo. O que quer que tivesse a ver com a absorção de todas as cores do espectro visível (popularmente conhecido como “cor preta”) e não estivesse relacionado a algo positivo teria o mesmo destino de Joana d’Arc e do Museu Nacional. Foram banidos das conversas ditas civilizadas o buraco negro, a lista negra, a ovelha negra, os verbos denegrir e esclarecer. Na fase 2, incineraram o criado-mudo, a mulata, o fazer nas coxas, a meia-tigela, o lavar a égua, o encher o bucho, a meia-pataca, o caroço do angu. Com a etimologia e o bom senso transformados em carvão, deram os trabalhos por findos.

Mas e as palavras que, direta ou subliminarmente, ofendem outros grupos subalternizados? Como não investir imaginação (e dinheiro público) em novas cartilhas para expurgar o idioma da infinidade de termos hostis às minorias sexuais?

Se “denegrir” (manchar, escurecer) afronta os afrodescendentes, como se sentirão as pessoas trans ao deparar com os adjetivos transitório e intransigente ou com o substantivo trânsfuga? Aparentemente, nenhuma universidade federal (todas com verba de sobra, dado o afã com que investem nesse tipo de questão) atentou para essa transgressão transfóbica aos direitos humanos.

Os bissexuais (a mais incompreendida e subnotificada das categorias de sexualidade alternativa) deveriam cobrar dos ministérios públicos estaduais e federal uma atuação mais enérgica contra a bifobia implícita nas palavras bizarro, bisonho, bipolar e biscate — bem como no bullying de haver um chocolate chamado Bis.

Comprovando que as questões raciais obscureceram a pauta LGBTQIAP+, não há notícia de reportagem na grande imprensa, artigo de opinião em portal progressista ou nota de agência de checagem de fatos que alerte sobre formas sutis de homofobia — e mesmo para a homofobia estrutural da língua portuguesa, presente, em toda a sua violência simbólica, em conjugações como afoguei, apaguei, neguei, droguei, amarguei, excomunguei.

Voltando ao primeiro parágrafo, é pena que tenham parado no humor negro, inveja branca etc. Ainda haveria muito o que delirar.

Mas o conclave, que rola no Vaticano a partir da próxima semana, será uma excelente oportunidade para reacender a velha chama e problematizar a fumaça preta (lamentando que deu chabu na eleição do novo pontífice) e a fumaça branca (festejando que habemus papam). Será que deixarão passar em brancas nuvens?

 

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