O Estado de S. Paulo
A radicalização identitária
é desafiadora para a democracia, pois dificulta a construção de consensos e
entendimentos
Não é de hoje que o tema das
identidades deixou de ser um problema pessoal para se converter em agenda de
engajamento político.
O avanço dos direitos
humanos, a fragmentação social, a força do antirracismo e das lutas feministas
foram se entrelaçando com a necessidade de modelar a face com que os indivíduos
se mostram ao mundo. Ser consciente de suas raízes socioculturais e de suas
escolhas, para poder expressá-las livremente, passou a ser aspiração de milhões
de pessoas. Encontrar uma identidade virou a tradução disso, sobretudo no
terreno do gênero, da opção sexual, da raça e das religiões. A ideia de pátria
também voltou a vibrar, insuflada pelas pregações da extrema direita.
Por caminhos variados, as buscas identitárias entraram por partidos e governos. Foram além de grupos e pessoas, ganharam foro regional e local, político e cultural.
Os movimentos identitários
são importantes na dinâmica da democratização. Forçam as democracias a
incorporarem demandas e pressões de novo tipo. Sua validade, no entanto, cobra
um preço. Exige processos amplos de persuasão e assimilação, que reiterem o caráter
ineliminável das diferenças sem levá-las aos extremos da excludência e da
excepcionalidade. O processo não é simples: requer a multiplicação de
experiências compartilhadas, de formas inclusivas de educação, de boas
políticas públicas e, especialmente, de ações que fomentem uma ética civil
aberta para as diferenças.
A exacerbação das diferenças
alimenta as batalhas identitárias, e essas, por sua vez, terminam por intoxicar
as interações sociais com proposições hostis ao universalismo.
As diferenças são, assim,
despolitizadas e reificadas, sendo corroídas por manifestações de superioridade
moral, cancelamentos e críticas retóricas enviesadas.
Quando bem compreendida, a
diversidade estimula setores invisíveis a buscarem maior projeção. Revitaliza a
democracia. Pode ajudar a que se corrijam os excessos do individualismo.
Vivida, porém, como ênfase sem mediações, leva a seu contrário: decompõe e
afasta, em vez de reunir. Num mundo de indivíduos soltos, escreveu Zygmunt
Bauman, “as identidades são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o
pesadelo, e não há como dizer quando um se transforma no outro”. São, por isso,
as “encarnações mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência”.
Hoje, como a racionalidade
crítica anda em baixa, as interações ficam pouco dialógicas. A exasperação as
invade, impulsionada pelo desejo de decretar verdades categóricas. As redes
sociais absorvem todas as batalhas identitárias, fazendo com que o mundo e os
“outros” virem ameaças, a serem enfrentadas a ferro e fogo.
Para complicar, a política
se desorganizou e há uma expansão assustadora da extrema direita, que trabalha
para fanatizar as pessoas e manipulá-las em seus desejos e fantasias. Os
populismos voltaram com tudo. Os sistemas políticos e os partidos não são mais
fontes confiáveis de coesão e organização.
Tudo está em xeque, e é
crescente a desconfiança em relação a governos, autoridades e instituições
políticas. Em decorrência, muitas pessoas optam por buscar espaços de luta no
terreno dos direitos identitários e do reconhecimento. Formam-se, assim, bolhas
autossuficientes que congestionam a vida social e a política.
A radicalização identitária
é desafiadora para a democracia, pois dificulta a construção de consensos e
entendimentos que seriam indispensáveis tanto para que se governe melhor quanto
para que se elaborem políticas sociais de caráter universal, voltadas para
todos. Isso faz com que cresçam polarizações paralisantes em diversos setores,
encrespando as ondas que temos de navegar. Como escreveu o cientista político
Yascha Mounk, a ênfase identitária é uma “armadilha política e pessoal”, que
torna mais difícil manter vivas “sociedades heterogêneas onde os cidadãos se
respeitam e confiam uns nos outros”.
Como efeito colateral, o
hiperidentitarismo modifica a orientação dos movimentos de emancipação. Como
observou a psicanalista Élisabeth Roudinesco, eles não mais se perguntam como
transformar o mundo, mas sim “como proteger as populações daquilo que as ameaça:
desigualdades crescentes, invisibilidade social, miséria moral”. Ao assim
procederem, não interagem de modo amplo, tendendo ao isolamento.
Bom para a extrema direita,
que a seu modo também é identitária e usa as identidades para gerar
agressividade e intolerância. Não há vestígios de universalismo nesse campo nem
preocupação de valorizar o pluralismo ou a igualdade social.
A crítica à ênfase
identitária é necessária, mas deve ser feita com ponderação, de modo a capturar
especificidades. Não se sustenta a partir de uma radicalização inversa, de
caráter mais programático. Não transigir, mas também não extrapolar e não
perder a chance de preservar o diálogo.
Nota: o título deste artigo
foi emprestado de um dos capítulos de meu livro A Democracia Desafiada (Ateliê
de Humanidades), no qual a análise do tema está mais aprofundada.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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