CartaCapital
Contra o “consumismo do sagrado”, Francisco
abraçava os fundamentos comunitários do cristianismo
Assim como as encíclicas Rerum Novarum, de
Leão XIII, e Mater et Magistra e Pacem in Terris, de João XXIII, em suas
peregrinações apostólicas, Francisco, sem
meias-palavras, cuidou das vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo
contemporâneo comandado pelo poder do dinheiro. Na edição de 17 de maio de
2018, o L’Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et
pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da
Fé. O texto de 16 páginas reúne “considerações para um discernimento ético
acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.
O documento foi apresentado na sala de imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução, o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros – os estercos do Diabo – e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos e valorizando o serviço à economia real. Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta, porém, uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Antes, parece às vezes retornar ao auge um egoísmo míope e limitado no curto prazo, que, prescindindo do bem comum, exclui dos seus horizontes a preocupação não só de criar, mas de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes.”
Os olhares do nosso tempo perderam de vista a
ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida por Francisco em
suas exortações e incrustada nas origens do cristianismo. Jaques Le Goff diz
com razão que, no cristianismo primitivo e no judaísmo, a eternidade não
irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a
“ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.
O teólogo Hans Kung escreveu em sua obra
magna, The Incarnation of God, que o Deus da Torá permanecia “externo”, como o
“outro” dos homens. Jesus, o Deus entre os homens, era amigo dos pecadores e
falava as palavras da comiseração do pai amoroso pelos filhos perdidos.
O papa Francisco rejeitava as formas de
religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo,
uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários
(comunistas?) do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se
nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para
que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo
sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade
que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à
comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por
propostas que não humanizam nem dão glória a Deus.”
Depois da Encarnação, a escatologia
judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica.
Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história
coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo
sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos
imaculados, mas que não cessemos de melhorar, vivamos o desejo profundo de
progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços.”
O desafio, disse, era afastar os fiéis de “um
Jesus sem carne e sem compromisso com o outro”
Num artigo sobre João XXIII, lamentei que os
homens e as mulheres de hoje falem descuidadamente da herança judaico-cristã
como se seus valores estivessem desde sempre incrustados na nossa natureza, se
é que temos uma. O cristianismo foi um divisor de águas na história da
humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das
sabedorias do mundo greco-romano.
Em entrevista sobre seu filme Satyricon,
Federico Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens
no crepúsculo do Império Romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das
concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme
escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”. Tal como
nas personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do
Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós
encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter
retornado nos exemplos de Francisco.
No medievo, a Igreja transformou-se numa
imponente hierarquia e os poderes do mundo material frequentemente atropelaram
as palavras dos evangelhos. Não vou aborrecer os leitores com relatos das
crises que pontilharam a história da instituição, eivada de cismas
e heresias, dividida pela Reforma, maculada pela Inquisição e
atormentada por Copérnico e Galileu.
No livro Homens em Tempos Sombrios, Hannah
Arendt dedicou um capítulo a João XXIII intitulado Angelo Giuseppe Roncalli: Um
Cristão no Trono de São Pedro de 1958 a 1963. Nesse ensaio, Arendt, entre
outras histórias a respeito de Angelo Roncalli, descreve o depoimento colhido
de uma camareira do hotel em que se hospedava em Roma: “Senhora”, disse ela,
“esse papa era um verdadeiro cristão. Como podia ser isso? E como aconteceu que
um verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro? Ele, primeiro, não teve
de ser indicado bispo e arcebispo, e cardeal, até ser finalmente eleito como
papa? Ninguém tinha consciência do que ele era?”
Para encerrar, ofereço algumas declarações de
Cristo no Sermão da Montanha registradas no Evangelho Segundo São Mateus.
“Jesus, pois, vendo as multidões, subiu ao
monte; e, tendo se assentado, aproximaram-se os seus discípulos,
1. e ele se pôs a
ensiná-los, dizendo:
2. Bem-aventurados
os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.
3. Bem-aventurados
os que choram, porque eles serão consolados.
4. Bem-aventurados
os mansos, porque eles herdarão a terra.
5. Bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.
6. Bem-aventurados
os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.
7. Bem-aventurados
os limpos de coração, porque eles verão a Deus.
8. Bem-aventurados
os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.
9. Bem-aventurados
os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
10. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa.”
Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital,
em 30 de abril de 2025.
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