STF tem dever de desarmar bomba previdenciária
Por O Globo
Contrarreforma da Previdência em julgamento pode ter impacto explosivo nas contas públicas
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quinta-feira um julgamento que pode ter impacto explosivo nas contas da Previdência. Está em jogo um dos pilares da reforma aprovada pelo Congresso em 2019. Para buscar o equilíbrio do sistema previdenciário, os congressistas aumentaram tempo de contribuição, idade mínima para aposentadoria e limitaram benefícios. Outros países preocupados com o envelhecimento populacional e o rombo crescente da Previdência promoveram reformas semelhantes. A controvérsia repousa sobre os detalhes — e, nesse caso, eles representam centenas de bilhões. Equivalem, na prática, a uma contrarreforma da Previdência, que poria a perder os ganhos orçamentários obtidos até agora e criaria risco ainda maior às já combalidas contas públicas.
Na aposentadoria por incapacidade permanente
decorrente de acidente de trabalho ou doença profissional, ficou garantida
aposentadoria correspondente a 100% da média salarial. Porém, nos casos de
invalidez não decorrentes de acidente ou doença no trabalho, a regra passou a
ser a mesma dos demais aposentados: remuneração correspondente a 60% da média
salarial, com acréscimo de 2 pontos percentuais por ano de contribuição além
dos 20 anos. A questão sob análise no STF é se todos os casos de invalidez
deveriam resultar em aposentadoria de 100% da média.
Antes de sair da Corte, o então ministro Luís
Roberto Barroso relatou o caso e se opôs à mudança. Os ministros Nunes Marques,
André Mendonça e Cristiano Zanin acompanharam o relator. Na direção contrária,
Flávio Dino, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli
apoiaram a ideia de assegurar 100% a todos os casos. Com o placar em 4x5,
faltam votar Gilmar Mendes e Luiz Fux.
Manter a regra em vigor não significa
condenar ninguém a situação vulnerável. Se a reforma da Previdência tivesse
esse efeito, o Brasil não festejaria neste ano a saída do Mapa da Fome das
Nações Unidas ou a queda acentuada de pobreza, miséria e desigualdade. Nenhum
aposentado no Brasil ganha menos de um salário mínimo. Em caso de perda
drástica de vencimentos, os aposentados por invalidez não ficam desamparados.
Se cumprem os requisitos, têm direito a programas como Bolsa Família ou
Benefício de Prestação Continuada (BPC).
A contrarreforma, em contrapartida, teria
poder devastador sobre as contas públicas. Na Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) estão listadas as principais demandas judiciais contra a União. Caso o
governo seja derrotado em todas, o impacto negativo nos cofres públicos é
estimado em R$ 765,6 bilhões. Desse total, 65% (ou R$ 497,9 bilhões) viriam da
contrarreforma da Previdência em julgamento no Supremo. Não é difícil prever as
consequências para o governo, em especial na dificuldade de financiar a rede
assistencial do Estado.
Com a mudança de entendimento, haveria
incentivo para quem trabalha tentar obter diagnóstico de doença crônica. Além
de antecipar a aposentadoria, ganharia mais que se aposentando na idade mínima.
Já superlativas, as filas do INSS nunca mais teriam fim. Os tribunais seriam
inundados por milhões de processos. A indústria de liminares relacionada ao BPC
não deixa dúvidas. Há uma bomba que o Supremo tem o dever de desarmar.
Cassar concessão da Enel pode ser necessário,
mas não elimina problemas
Por O Globo
Sem haver política consistente de plantio e
poda de árvores, os apagões persistirão
É um alento que o ministro de Minas e Energia,
Alexandre Silveira, o governador Tarcísio de Freitas e o prefeito Ricardo Nunes
tenham deixado divergências de lado em prol dos interesses da população que
sofre com a falta de luz em São Paulo. Depois
de reunião conjunta, Silveira anunciou que a Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel) instauraria um processo para romper o contrato com a
concessionária Enel. É inegável que as respostas da empresa foram
insuficientes, como mostram os transtornos gigantescos sofridos pela população
desde as tempestades da semana passada. Mas é fundamental discutir também
outras questões, em especial a gestão das árvores. O plantio de espécies
adequadas e a rotina de poda da Prefeitura também contribuem para danos à rede
elétrica.
Não há dúvida de que os eventos da semana
passada foram excepcionais. O vento chegou a 98km/h, um dos mais fortes já
registrados. Mas, em todo o mundo, situações assim têm se transformado numa
rotina em decorrência das mudanças climáticas. O jeito é se preparar — e isso
vale para governos e concessionárias. Havia avisos meteorológicos sobre chuvas
e ventanias. Infelizmente o que se viu foi o despreparo de sempre. No auge da
crise, chegou-se a contar 2,2 milhões de imóveis sem luz em São Paulo. Isso
significa estoques perdidos de comida, sacrifícios para doentes, idosos e
crianças, prejuízos para comércio e indústria. E não foi a primeira vez. A
maior metrópole do país não pode parar a cada temporal.
É compreensível a indignação com a Enel pela
inépcia evidente. Mas a cassação da concessão, se acontecer, não resolverá
todos os problemas. As responsabilidades não estão restritas à empresa de
energia, se estendem também ao poder público. Árvores doentes ou malcuidadas
podem cair com mais facilidade diante de ventos fortes. Podas malfeitas tornam
mais prováveis as quedas de galhos sobre a rede elétrica. Espécies mal
escolhidas crescem demais e com frequência formam um emaranhado com os fios.
Há boas experiências na solução desses
problemas. Desde 2023, a cidade de Santos, no litoral paulista, dispõe de um
plano preventivo voltado para queda de árvores. O município também sofreu com
os ventos fortes, mas não foram registrados apagões.
Em meio ao tiroteio sobre responsabilidades,
a Prefeitura paulistana acusa a Enel, encarregada da poda onde há risco
elétrico, de podar apenas 11% do total de árvores com que havia se
comprometido. A Enel contesta os números e argumenta que há falhas no
levantamento da Prefeitura.
Como os eventos climáticos extremos se tornaram mais intensos e frequentes, é provável que tempestades como a da semana passada voltem a castigar a cidade. Ainda que o rompimento do contrato (que vai até 2028) siga adiante e leve à cassação da concessão, isso não encerrará os transtornos. Se não houver uma política consistente de monitoramento, conservação e poda das árvores — em especial as que representam maiores riscos à rede elétrica —, o problema persistirá.
Indícios alarmantes de infiltração do crime
no Rio
Por Folha de S. Paulo
Operações levam a prisões de expoentes do
Legislativo e do Judiciário, como o então presidente da Alerj
Desembargador é suspeito de vazar informações
em caso envolvendo deputado e facções, que também espalham pela economia em
todo o país
Imbricações entre o crime
organizado e o poder estatal não são exatamente uma novidade. É
da própria natureza das quadrilhas tentar ocupar espaços de comando de que
possam extrair vantagens. Entretanto uma série de ações policiais recentes
no Rio de
Janeiro, todas autorizadas pela Justiça, mostra que o problema
parece maior e mais grave do que se poderia supor.
O presente ciclo de revelações começou em
setembro, quando foi deflagrada a Operação Zargun. Ali foi preso o deputado
estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva (MDB), conhecido
como TH Joias e
acusado de favorecimento de organização criminosa.
O suspeito teria intermediado compra e venda
de drogas, fuzis e equipamentos antidrone, além de ter empregado na Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) a mulher de um notório traficante. Com TH
Joias foram presas mais 14 pessoas, incluindo um delegado da Polícia
Federal, um ex-secretário do governo do estado e três PMs. E a
história está só começando.
A polícia desconfiou que TH Joias havia sido
informado de que seria alvo de uma operação e se pôs a investigar o possível
vazamento. Isso resultou na Operação Unha e Carne, que prendeu ninguém menos do
que o então presidente da Alerj, Rodrigo
Bacellar (União Brasil),
cotado para disputar o governo do estado na eleição do ano que vem.
Pelo que acreditam os policiais, foi Bacellar
quem alertou o ex-deputado estadual da iminência da ação policial, dando-lhe
tempo para se livrar de material incriminador. Depois, a Alerj votou
corporativamente para reverter a prisão de Bacellar, mas ele não voltou a
presidir a Casa.
Na Unha e Carne, as autoridades apreenderam o
celular de Bacellar, o que gerou a Operação Unha e Carne 2 —resultando na prisão do
desembargador federal Macário Ramos Júdice Neto, suspeito de ser a
fonte primária dos vazamentos. Ele estaria jantando com o ex-presidente da
Assembleia quando foi dado o fatídico telefonema para TH Joias.
Júdice Neto tem história no Judiciário.
Passou 18 anos afastado do cargo por suspeita de venda de sentenças e foi
reintegrado depois que o processo disciplinar a que respondia prescreveu. Daí
foi automaticamente promovido a desembargador do TRF-2, por antiguidade no
serviço.
Embora o nível de contaminação de estruturas
de poder pelo crime pareça particularmente avançado no Rio de Janeiro, o fenômeno
ocorre em todo o país. Espalha-se também para
setores da economia privada, como se viu na paulistana Operação
Carbono Oculto.
A hora de agir, com investigações e processos
bem instruídos, é agora, pois quanto mais deixarmos o crime entranhar-se na
política, na economia e
nas instituições, mais difícil será ficarmos livres dele depois. Há um ponto
crítico a partir do qual não se pode distinguir com clareza o que é Estado e o
que é quadrilha. Não se pode atravessar esse limiar.
Acordo de Paris, dez anos depois
Por Folha de S. Paulo
Pacto dificilmente atingirá meta de manter
alta da temperatura abaixo de 2ºC, mas futuro seria pior sem ele
Acordo influencia políticas públicas e
investimentos; soberania nacional, com disputas geopolíticas e econômicas, é
seu maior desafio
No dia 12 de dezembro de 2015, a diplomacia
global alcançou feito notável no setor ambiental com a assinatura do Acordo de
Paris, durante a COP21 na capital francesa.
O documento estabeleceu metas relativas à
alta da temperatura atmosférica do planeta e a emissões de carbono, além da
apresentação de planos periódicos de cada nação para alcançá-las.
De fato, a projeção do aquecimento global
para as próximas décadas seria mais crítica sem o acordo, segundo o qual o
aumento da temperatura média mundial deveria ser mantido abaixo de 2°C até
2100, preferencialmente até 1,5ºC. A ONG científica Climate Action Tracker
estima que tal indicador chegaria a
3,6ºC em 2100 sem o pacto firmado na COP21; com ele, a 2,6ºC.
Resta claro que seu principal
objetivo dificilmente será cumprido e que isso se deve à queima
de combustíveis fósseis.
O banco de dados sobre emissões de carbono da
Comissão Europeia mostra que, de 2015 a 2024, o indicador global pouco se
alterou, indo de 54,8 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa para 54,9
bilhões —com pico de 57,1 bilhões em 2023.
Mesmo assim, é inegável que o Acordo de Paris
tem servido de espinha dorsal para políticas públicas, decisões judicias e
investimentos privados —como o barateamento de energias renováveis.
O acordo é voluntário, não possui normas
vinculantes e, portanto, não há punições ou sanções internacionais. Os planos
de cada país são apresentados por meio de contribuições nacionalmente
determinadas (NDCs), atualizadas a cada cinco anos.
Tal desenho, por vezes criticado pela
ausência de responsabilizações, foi estratégico para sua universalidade e
aceitação, ao permitir operacionalização sob a pressão de soberanias nacionais.
Tal pressão se intensifica no cenário atual, com disputas geopolíticas e protecionismos.
O retorno de rivalidades entre potências,
como Estados
Unidos e China e Rússia e União
Europeia, fragmentam o multilateralismo.
No âmbito econômico, países em
desenvolvimento enfrentam desafios para aliar crescimento com descarbonização,
enquanto nações ricas lidam com pressões locais para direcionar recursos ao
financiamento climático.
Não à toa, Laurence Tubiana, chefe da diplomacia francesa na COP21, disse à Folha que o Acordo de Paris não está falhando, ele "está sendo testado", já que "a soberania está sendo afirmada com mais força". Pelo futuro do clima do planeta, é preciso um esforço global para que o pacto ambiental histórico sobreviva ao teste.
O fim do pesadelo chamado Enel
Por O Estado de S. Paulo
Depois do terceiro apagão de longa duração em
São Paulo, Enel é colocada na parede pelos governos federal, estadual e municipal.
Vender a concessão para outra empresa é a melhor alternativa
Demorou, mas a paciência que o governo
federal ainda tinha com a Enel São Paulo acabou de vez nesta semana. Após a
passagem de um ciclone extratropical pela capital paulista e municípios
vizinhos, a inaceitável demora da empresa em restabelecer o fornecimento de
energia terminou com o reconhecimento, pelo ministro de Minas e Energia,
Alexandre Silveira, de que a distribuidora perdeu as condições de se manter à
frente da concessão.
Romper um contrato de concessão, no entanto,
é uma medida extrema e, portanto, algo bem mais complicado do que o ministro, o
governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o prefeito de São Paulo,
Ricardo Nunes, fazem parecer. Cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel) conduzir esse tipo de processo com cuidado, amparo técnico e amplo
direito à defesa – não por leniência, mas por zelo com a segurança jurídica,
imprescindível para assegurar um ambiente de negócios confiável para
investidores.
De relevante, a Aneel anunciou que o blecaute
da semana passada será avaliado pela agência no âmbito do termo de intimação
contra a Enel São Paulo, aberto após o apagão de outubro do ano passado, também
de grandes proporções e longa duração. Isso pode encurtar os trâmites
burocráticos, que seriam ainda mais longos caso o processo começasse do zero,
mas, ainda assim, serão meses até que haja uma recomendação de rescisão do
contrato.
Uma vez concluída essa fase, o caso voltaria
para as mãos do Ministério de Minas e Energia, que surpreenderá se seguir, pela
primeira vez, a orientação do órgão regulador. Casos semelhantes envolvendo
distribuidoras de energia no Amapá e no Amazonas, por exemplo, terminaram com
as recomendações de caducidade de concessão emitidas pela Aneel devidamente
ignoradas e engavetadas. O grupo italiano, de sua parte, assegura ter cumprido
integralmente o contrato.
Independentemente do governo, o custo de
cassar um contrato de concessão, ainda que a instrução do processo
administrativo seja impecável, não é pequeno. Por outro lado, enquanto o
processo se desenrola na esfera administrativa, a distribuidora precisa manter
as atividades sabendo que provavelmente perderá o contrato, o que costuma
deteriorar ainda mais os serviços até que a rescisão contratual seja
formalizada e uma nova empresa seja selecionada em leilão.
Tendo em vista que a atuação da Enel já vem
sendo bastante questionada, para os cidadãos paulistanos, esse seria um cenário
desesperador. E é por isso que há quem veja na rara unidade demonstrada por
Silveira, Tarcísio e Nunes, a despeito das rivalidades políticas, uma tentativa
de forçar a Enel São Paulo a vender a concessão para outra empresa do setor
elétrico – certamente haverá interessados – e encerrar a agonia do grupo
italiano no País.
Foi o que aconteceu com a Amazonas Energia,
comprada no ano passado pela Âmbar, empresa do grupo J&F, dos irmãos
Joesley e Wesley Batista. De quebra, a Enel ainda poderia sair no lucro, pois
terá direito a indenização pelos investimentos realizados e ainda não
amortizados até o fim do contrato, que se encerra em 2028.
Para as distribuidoras de energia, o expurgo
do grupo italiano também pode cair bem, haja vista que a reputação da Enel não
contribui para a imagem do setor. Das 19 empresas que pediram a renovação dos
contratos por mais 30 anos, 15 receberam aval positivo por parte da Aneel, 2 já
assinaram novos contratos com o governo e 2 ainda estão com processos
pendentes, justamente a Enel São Paulo e a Enel Ceará.
Uma nova empresa ainda contaria com a boa
vontade dos políticos e da população paulistana – ao menos até o próximo apagão
causado por um evento climático extremo. Até lá, espera-se que a Prefeitura de
São Paulo tenha executado um plano de manejo para lidar com as árvores da
cidade, e que a Aneel tenha aprimorado seus mecanismos de regulação e
fiscalização do setor, haja vista que nem a aplicação da maior multa de sua
história foi capaz de corrigir a trajetória da Enel.
Para os paulistanos, que enfrentaram três
apagões de grande impacto nos últimos três anos, basta de tantas desculpas.
A doutrina Trump em ação
Por O Estado de S. Paulo
A crescente pressão sobre Maduro serve como
exemplo de como os EUA sob Trump pretendem impor seu poder à América Latina:
sai a defesa dos valores liberais, entra a força bruta
A escalada entre os EUA e a Venezuela deixou
de ser um episódio retórico ou um gesto tático. Ela se tornou o teste mais
explícito até agora da política hemisférica de Donald Trump em seu segundo
mandato – e um sinal de como Washington pretende exercer poder na América
Latina. O destino de Nicolás Maduro é apenas parte da equação. O que está em
jogo é o precedente que a Venezuela estabelece para a região.
A crise não nasce de um incidente isolado.
Ela decorre de uma reinterpretação deliberada da Doutrina Monroe (“A América
para os americanos”), combinada à nova Estratégia de Segurança Nacional da Casa
Branca. O Hemisfério Ocidental passa a ser tratado como espaço de controle
prioritário, onde a presença de China, Rússia, Irã e Cuba não é vista como
competição legítima, mas como violação estratégica. A Venezuela surge, assim,
como laboratório de uma política mais coercitiva: se Washington não impuser
limites ali, sua credibilidade hemisférica se dissolve.
Esse movimento se encaixa numa lógica
geopolítica mais ampla. Trump abandona a axiologia da ordem liberal e adota uma
política clássica de grandes potências. A tolerância com a agressão russa na
Ucrânia, a ambiguidade em relação a Taiwan e a agressividade na América Latina
fazem parte do mesmo desenho: valores cedem lugar a esferas de influência. Para
seus defensores, trata-se de realismo tardio; para seus críticos, de cinismo
institucionalizado. Em ambos os casos, a Venezuela deixa de ser exceção e passa
a ser sintoma.
O conflito também é enquadrado como questão
de segurança nacional. Maduro foi indexado como “narcoditador” e seu regime
como um Estado-cartel, o que legitimaria ações extraterritoriais, operações
navais e ações secretas. A Venezuela se converte em campo de teste de uma
doutrina de guerra híbrida contra o crime organizado. O problema é que os dados
sobre o peso real do país no fluxo de drogas rumo aos EUA são menos conclusivos
do que a retórica sugere – o que levanta dúvidas sobre o uso instrumental da
narrativa antidrogas.
Migração e petróleo ajudam a explicar a
pressão, mas não a determinam. Trump trata o êxodo venezuelano como ameaça de
fronteira, embora sanções e instabilidade tendam a ampliá-lo no curto prazo. Já
o petróleo venezuelano não é motor da escalada: os EUA não dependem dele. O
interesse é estratégico: negar o recurso a rivais e condicionar politicamente o
setor energético venezuelano. Em ambos os casos, são instrumentos, não causas
centrais.
O ponto mais delicado permanece a mudança de
regime. Há consenso de que Maduro pode cair; há profundo dissenso sobre o dia
seguinte. A Venezuela é um Estado corroído, com Forças Armadas politicamente leais
ao regime, porém institucionalmente degradadas, e com o monopólio da força
diluído entre militares, milícias e redes criminosas. A doutrina Trump rejeita
projetos de “reconstrução nacional”, mas não pode ignorar o vácuo de poder que
a queda do regime criaria. Derrubar pode ser rápido; estabilizar, não.
Na região, o desconforto é evidente. Brasil,
México e Colômbia rejeitam uma ação militar, mas têm pouco poder de veto. O
custo diplomático imediato para Washington é baixo, reforçando a sensação de
retorno à lógica do “quintal estratégico”. A América Latina assiste, mais uma
vez, a uma crise que a afeta diretamente sem ser protagonista dela.
Trump não reivindica coerência democrática –
e isso muda o debate. A ausência de hipocrisia pode parecer algo como uma
virtude, mas não elimina riscos. A história latino-americana mostra que atalhos
militares substituem política por coerção e costumam cobrar o preço depois. A
questão não é defender a tirania de Maduro, mas reconhecer que a política de
força raramente entrega a estabilidade que promete.
A crise entre EUA e Venezuela revela menos
sobre Caracas do que sobre o mundo de Trump: a normalização das esferas de
influência, o abandono da ordem liberal e a aceitação do caos como custo
estratégico. O perigo não está apenas em errar na Venezuela, mas em transformar
o hemisfério num espaço onde a força substitui a política, e onde os efeitos
colaterais tendem a atravessar fronteiras.
Infiltração mafiosa
Por O Estado de S. Paulo
Prisão de desembargador federal no Rio mostra
o alcance do crime organizado no Estado
Por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Alexandre de Moraes, a Polícia Federal (PF) prendeu na terça-feira
passada o desembargador Macário Judice Neto, do Tribunal Regional Federal da
2.ª Região (TRF-2), com sede no Rio. O magistrado é suspeito de ter vazado
informações sigilosas da Operação Zargun, que levou à prisão do ex-deputado
estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva (expulso do MDB), vulgo “TH Joias”,
acusado de ter colocado o mandato na Assembleia Legislativa a serviço do
Comando Vermelho.
A prisão de um desembargador federal é, por
si só, um fato de extrema gravidade em qualquer democracia. No contexto de uma
investigação policial sobre o vazamento de informações sigilosas para
beneficiar uma das mais poderosas organizações criminosas em atividade no País,
o fato ultrapassa o escândalo individual e assume contornos sistêmicos. É nesse
sentido que a prisão de Judice Neto deve ser recebida, isto é, como um sintoma
do grau de infiltração das organizações criminosas no Estado e dos riscos que
isso representa para a sociedade fluminense e, por extensão, brasileira.
A Operação Zargun, deflagrada pela PF em
setembro, visa justamente a apurar a nefasta interseção entre o crime
organizado e o poder público no Rio. Já não restam dúvidas de que o Comando
Vermelho, outras facções e milícias têm seus braços políticos, financeiros e
judiciais espraiados pelo Estado para garantir uma proteção institucional que
lhes permita expandir seus negócios ilícitos.
O crime organizado não se resume a
traficantes ou milicianos armados até os dentes dominando territórios,
aterrorizando cidadãos e corrompendo servidores públicos. Há uma rede
sofisticada que opera nos bastidores do Executivo, do Legislativo e, agora sob
suspeita, também do Judiciário. Isso não chega a ser novidade. Há décadas, o
Rio convive com a corrosão progressiva de suas estruturas estatais. O que
espanta é quão à vontade facções e milícias se sentem para se entranhar cada
vez mais fundo nas instâncias do poder institucional.
A captura do Estado, ainda que parcial, é o
grande objetivo de organizações criminosas de contornos mafiosos cada vez mais
nítidos. É isso que lhes garante impunidade, previsibilidade – haja vista o
vazamento de informações – e poder virtualmente ilimitado para combater seus
inimigos, dentro e fora do Estado. Nesse cenário, a eventual cooptação de
agentes públicos de alto escalão, como um desembargador federal, representa um
salto qualitativo, digamos assim, no processo de sequestro institucional a que
tem se dedicado o crime organizado.
O dano é particularmente mais severo quando as suspeitas recaem sobre a magistratura. Juízes são garantidores da legalidade, pilares da confiança social no Estado de Direito. Do ponto de vista simbólico, a simples percepção de que decisões judiciais ou informações sensíveis possam ser manipuladas em favor de criminosos, por óbvio, mina a credibilidade do sistema de Justiça e alimenta o ceticismo da população em relação às instituições. Na prática, enfraquece a capacidade do Estado de combater as organizações criminosas. E sem a força do Estado, o que resta à sociedade?
Argentina ajusta sistema cambial em busca de
dólares
Por Valor Econômico
Porém, a aceleração na desvalorização da
moeda pode reduzir o ritmo de declínio da inflação, que deu cacife político
decisivo ao novo governo
O governo de Javier Milei deu um passo que
havia prometido não dar e mexeu no sistema de bandas cambiais. Após uma vitória
clara nas eleições de meio de mandato, em outubro, conquistando uma posição de
peso no Legislativo, Milei insistiu a princípio em que não havia nada errado
com o esquema de correção do teto e do piso da variação da moeda diante do
dólar em 1% ao mês. Mas a escassez de dólares quase o fez ser derrotado nas
eleições, com valorizações fortes do peso, além de escândalos nas hostes
governistas e erros políticos eleitorais que fizeram os prognósticos de
desastre iminente se abater sobre o governo. A rejeição dos eleitores aos
peronistas, principal partido de oposição, foi mais forte, e o Liberdade Avança
oficialista ganhou musculatura no Congresso.
O Banco Central anunciou anteontem que a
partir de janeiro a banda cambial variará de acordo com a inflação de dois
meses antes, o que pelo ritmo da evolução atual dos preços, um pouco acima de
2%, significa que a desvalorização da moeda será acelerada. O principal temor
do governo com deslizamento maior no câmbio era pôr a perder o grande declínio
inflacionário, que deu cacife político decisivo ao novo governo. Em dezembro de
2023, quando Milei assumiu, o índice de preços ao consumidor foi de 25,5% no
mês e 211% em 12 meses. A maxidesvalorização inicial, seguida de um
congelamento virtual, derrubou a inflação a 2,5% em novembro, enquanto que a de
12 meses foi de 31,4%.
Peso valorizado derruba os preços, mas tem
várias contraindicações em geral, e outras particulares no caso argentino. A
Argentina não tem reservas internacionais, e as que possui são fruto do maior
acordo de ajuda já feito pelo Fundo Monetário Internacional com um país, de US$
45 bilhões. Retirando obrigações, elas ainda são negativas. Por isso, uma das
metas fixadas na extensão do acordo com o Fundo, que emprestou mais US$ 20
bilhões à Argentina, foi a de recomposição das reservas, que o regime de câmbio
semifixo impediu Milei de cumprir até agora e o obrigou a pedir waiver na
última revisão periódica do entendimento.
Sem reservas e com o peso valorizado, as
importações explodiram, o saldo comercial, única fonte garantida de dólares,
minguou, e a pressão pela desvalorização seguiu outro caminho que não a via do
aumento de preços — o da penúria de divisas fortes.
O governo fez a escolha realista por um
caminho intermediário, diante da demanda de cumprimento da promessa eleitoral
de 2023, de liberação total do câmbio, ainda reivindicada por empresas e
analistas privados. Haverá alguma pressão sobre os preços domésticos no curto
prazo em um momento em que a inflação ainda não está domada, mas sob controle
diante da baixa temperatura da economia. A Argentina cresceu 3,3% no terceiro
trimestre do ano, mas a base de comparação é baixa, e não tem havido aceleração
das atividades econômicas. O risco de uma nova escalada inflacionária ainda é
baixo.
O governo se comprometeu a comprar US$ 10
bilhões para formar reservas no ano. O plano é injetar pesos correspondentes na
economia sem esterilizá-los, isto é, sem enxugar essa oferta com a emissão de
títulos públicos. Como um dos motivos principais de contenção da inflação foi a
interrupção da emissão monetária pelo Banco Central, que não teve mais de
cobrir os enormes déficits públicos, a esperança da equipe de Milei é a de que
o câmbio se valorize.
Um dos desafios dos governos argentinos é
tornar o peso confiável. A moeda argentina é o dólar, para onde correm todas as
economias ao menor sinal de elevação dos preços ou de instabilidade política.
Para isso, o BC teve de elevar acima de 100% a taxa de juros nominal no início
do governo, e hoje ela está em 29%, em linha com a inflação no ano, de 27,9%.
Manter a inflação baixa é a melhor forma de fortalecer a moeda, mas isso leva
tempo em um país que conviveu por muito tempo com uma inflação crônica.
Para deter as fontes de emissão, o governo
Milei obteve o primeiro superávit primário anual em mais de uma década,
interrompeu por completo os investimentos públicos, corrigiu as aposentadorias
abaixo da inflação, aumentou as tarifas públicas, eliminou subsídios e jogou
pesado para que os acordos salariais não fossem corrigidos plenamente pela
inflação passada. O resultado, porém, foi um crescimento débil, sem que haja um
motor claro a impulsionar a expansão. Milei acredita que desregulamentação
radical, mais reformas, como a de impostos e trabalhista, fará por si só com
que o crescimento venha por meio dos investimentos privados. Mas isso ainda não
aconteceu.
O governo conta com a reação da balança comercial e os investimentos em petróleo e energia para alavancar as atividades. A correção cambial prometida ajudou a reduzir o risco-país a um dos menores níveis desde 2018 (550 pontos, ante 193 do Brasil), assim como a vitória eleitoral governista. Sem crescimento, porém, o investimento externo não virá, e este é um enorme ponto de interrogação sobre o sucesso das reformas liberais de Milei.
Cerco à Venezuela é alerta para toda a região
Por Correio Braziliense
Reconhecido como um articulador estratégico
na região, o Brasil precisa estar atento aos sinais e às investidas trumpistas
para não comprometer sua importância diplomática e os interesses nacionais
Anunciado na noite de terça-feira, o cerco
naval completo da Venezuela pelas Força Armadas dos Estados Unidos, nas
palavras do presidente Donald Trump, é mais um capítulo da escalada da tensão
entre os dois países desde que o republicano voltou à Casa Branca e sinal
inequívoco de que não se trata de um embate restrito às duas nações. A ofensiva
da "maior Armada já reunida na história da América do Sul" faz parte
de uma jogada estratégica do líder norte-americano para recompor a influência
do seu país nas Américas e conter o avanço de potências rivais. Se não
pretendem ser meros observadores, os outros atores desse tabuleiro político
precisam redefinir ou afinar seus movimentos.
De forma prática, o bloqueio deve impedir que
cargueiros de petróleo não ligados à Chevron, que é dos EUA, entrem e saiam da
Venezuela. A Armada seguirá pressionando Caracas até que "devolvam todo o
petróleo, terras e outros recursos que roubaram de nós", também segundo
Trump. A mensagem escrita em sua rede social, porém, não deixa claro a que
desfalques ele se refere. Também falta ser mais consistente quanto à afirmação
de que o regime de Maduro atua como uma organização narcoterrorista que envia
quantidade volumosa de cocaína aos cartéis mexicanos que abastecem o território
estadunidense.
Especialistas em segurança pública não
reconhecem essa participação expressiva da Venezuela no tráfico internacional
de drogas. A edição mais recente do Relatório Mundial sobre Drogas da ONU,
divulgada neste ano, sequer tem a Venezuela entre os países da região que mais
participam da produção e comercialização do mercado global dessas substâncias
ilícitas. São eles: Peru, México, Colômbia e Bolívia.
Não são exagerados, portanto, a leitura de
que a nova versão da "guerra às drogas" se trata de um pretexto
para pôr em prática intervenções com outros fins e o entendimento de que a
ofensiva trumpista atropela preceitos do direito internacional. Vale lembrar
que os venezuelanos abrigam as maiores reservas de petróleo do mundo e têm como
principal comprador a China, que já é considerada o segundo maior parceiro
comercial da América Latina e Caribe, atrás apenas dos EUA.
Nesse sentido, a presidente do México,
Claudia Sheinbaum, acerta ao reiterar que a soberania do seu país precisa ser
respeitada. Trump vem afirmando que considera deflagrar no país vizinho uma
ofensiva similar à que está em curso no Pacífico e no Caribe. Diferentemente da
Venezuela, o México tem uma história de enfrentamento ao narcotráfico.
A preocupação também se volta ao Brasil, que
discute a equiparação das facções criminosas a grupos terroristas. Integrantes
da cúpula do Exército e outros especialistas alertam que a medida cria o risco
de interferência externa. Isso em meio, também nesta terça, à assinatura de um
pacto entre Estados Unidos e Paraguai que prevê a atuação de soldados
estadunidenses no país sul-americano para coibir o que consideram grupos
terroristas. Não será surpresa se outros países da região alinhados ao
republicano firmarem acordos semelhantes.
Em ligação recente, o presidente Lula disse ter afirmado a Trump que a América Latina é "um zona de paz" e que o "poder das palavras, não o das armas" é o mais eficaz para a resolução de problemas. Segundo o brasileiro, o chefe da Casa Branca teria respondido: "Eu tenho mais armas, eu tenho mais navios, eu tenho mais bombas". Reconhecido como um articulador estratégico na região, o Brasil precisa estar atento aos sinais e às investidas trumpistas para não comprometer sua importância diplomática e os interesses nacionais.
Corte Suprema quebra ciclo de impunidade
Por O Povo (CE)
As instituições brasileiras enfrentaram com
destemor pressões violentas, mostrando-se à altura de uma tarefa histórica.
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu,
nesta terça-feira, um julgamento que fez por merecer a classificação de
histórico. Foi um acontecimento sem precedentes no Brasil, que levou
ao banco dos réus 31 pessoas, condenando 29 delas por participarem de uma
organização que tentou dar um golpe de Estado no Brasil. O plano incluía o
assassinato do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo
Alckmin, e o ministro do STF, Alexandre de Moraes.
A maioria dos réus foi sentenciada por cinco
crimes: tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe
de Estado, participação em organização criminosa armada, dano
qualificado e deterioração de patrimônio tombado. O ex-presidente da República,
Jair Bolsonaro, recebeu a pena mais alta, condenado a 27 anos e três meses de
prisão, em regime inicialmente fechado.
Outro feito inédito foi romper uma longa
sequência de impunidade aos militares que participam de quarteladas
para, em seguida, receberem perdão ou anistia por seus crimes. Criou-se assim
um sentimento de que a farda os protege, incentivando a repetição de aventuras
golpistas. Esse círculo vicioso foi rompido pelo STF, com a condenação de duas
dezenas de militares, incluindo oficiais de altas patentes, entre eles coronéis,
generais e um almirante.
Internamente, os aliados do ex-presidente
promoveram uma série de ataques à Corte Suprema visando desqualificar
o julgamento, com argumentos sem nenhuma base na realidade. Bolsonaro e seus
aliados negavam a existência de uma trama golpista, sob o falso argumento de
que tudo não passava de perseguição política, apesar das evidências expostas nos
processos. Algumas dessas provas foram produzidas pelos próprios condenados,
como a "minuta do golpe" e o documento "Punhal verde e
amarelo", no qual se descreviam ações para monitorar e eliminar
adversários políticos.
Mas agiram também externamente contra os
interesses do País, para atender a interesses familiares. Com esse
propósito, incentivaram o governo dos Estados Unidos a impor um
"tarifaço" para prejudicar as exportações brasileiras. Além disso,
foram artífices da iniciativa visando atingir diretamente o STF, com a
imposição da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes.
As instituições brasileiras — especialmente a
Polícia Federal, STF, Procuradoria-Geral da República —, enfrentaram com
destemor essas pressões violentas, mostrando-se à altura de uma tarefa
indeclinável: a de identificar e levar à Justiça aqueles que atentaram contra o
Estado Democrático de Direito, em um julgamento exemplar, nos termos das leis
que regem uma democracia, que uma organização criminosa armada pretendia golpear.

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