quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

STF tem dever de desarmar bomba previdenciária

Por O Globo

Contrarreforma da Previdência em julgamento pode ter impacto explosivo nas contas públicas

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quinta-feira um julgamento que pode ter impacto explosivo nas contas da Previdência. Está em jogo um dos pilares da reforma aprovada pelo Congresso em 2019. Para buscar o equilíbrio do sistema previdenciário, os congressistas aumentaram tempo de contribuição, idade mínima para aposentadoria e limitaram benefícios. Outros países preocupados com o envelhecimento populacional e o rombo crescente da Previdência promoveram reformas semelhantes. A controvérsia repousa sobre os detalhes — e, nesse caso, eles representam centenas de bilhões. Equivalem, na prática, a uma contrarreforma da Previdência, que poria a perder os ganhos orçamentários obtidos até agora e criaria risco ainda maior às já combalidas contas públicas.

Na aposentadoria por incapacidade permanente decorrente de acidente de trabalho ou doença profissional, ficou garantida aposentadoria correspondente a 100% da média salarial. Porém, nos casos de invalidez não decorrentes de acidente ou doença no trabalho, a regra passou a ser a mesma dos demais aposentados: remuneração correspondente a 60% da média salarial, com acréscimo de 2 pontos percentuais por ano de contribuição além dos 20 anos. A questão sob análise no STF é se todos os casos de invalidez deveriam resultar em aposentadoria de 100% da média.

Antes de sair da Corte, o então ministro Luís Roberto Barroso relatou o caso e se opôs à mudança. Os ministros Nunes Marques, André Mendonça e Cristiano Zanin acompanharam o relator. Na direção contrária, Flávio Dino, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli apoiaram a ideia de assegurar 100% a todos os casos. Com o placar em 4x5, faltam votar Gilmar Mendes e Luiz Fux.

Manter a regra em vigor não significa condenar ninguém a situação vulnerável. Se a reforma da Previdência tivesse esse efeito, o Brasil não festejaria neste ano a saída do Mapa da Fome das Nações Unidas ou a queda acentuada de pobreza, miséria e desigualdade. Nenhum aposentado no Brasil ganha menos de um salário mínimo. Em caso de perda drástica de vencimentos, os aposentados por invalidez não ficam desamparados. Se cumprem os requisitos, têm direito a programas como Bolsa Família ou Benefício de Prestação Continuada (BPC).

A contrarreforma, em contrapartida, teria poder devastador sobre as contas públicas. Na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) estão listadas as principais demandas judiciais contra a União. Caso o governo seja derrotado em todas, o impacto negativo nos cofres públicos é estimado em R$ 765,6 bilhões. Desse total, 65% (ou R$ 497,9 bilhões) viriam da contrarreforma da Previdência em julgamento no Supremo. Não é difícil prever as consequências para o governo, em especial na dificuldade de financiar a rede assistencial do Estado.

Com a mudança de entendimento, haveria incentivo para quem trabalha tentar obter diagnóstico de doença crônica. Além de antecipar a aposentadoria, ganharia mais que se aposentando na idade mínima. Já superlativas, as filas do INSS nunca mais teriam fim. Os tribunais seriam inundados por milhões de processos. A indústria de liminares relacionada ao BPC não deixa dúvidas. Há uma bomba que o Supremo tem o dever de desarmar.

Cassar concessão da Enel pode ser necessário, mas não elimina problemas

Por O Globo

Sem haver política consistente de plantio e poda de árvores, os apagões persistirão

É um alento que o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, o governador Tarcísio de Freitas e o prefeito Ricardo Nunes tenham deixado divergências de lado em prol dos interesses da população que sofre com a falta de luz em São Paulo. Depois de reunião conjunta, Silveira anunciou que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) instauraria um processo para romper o contrato com a concessionária Enel. É inegável que as respostas da empresa foram insuficientes, como mostram os transtornos gigantescos sofridos pela população desde as tempestades da semana passada. Mas é fundamental discutir também outras questões, em especial a gestão das árvores. O plantio de espécies adequadas e a rotina de poda da Prefeitura também contribuem para danos à rede elétrica.

Não há dúvida de que os eventos da semana passada foram excepcionais. O vento chegou a 98km/h, um dos mais fortes já registrados. Mas, em todo o mundo, situações assim têm se transformado numa rotina em decorrência das mudanças climáticas. O jeito é se preparar — e isso vale para governos e concessionárias. Havia avisos meteorológicos sobre chuvas e ventanias. Infelizmente o que se viu foi o despreparo de sempre. No auge da crise, chegou-se a contar 2,2 milhões de imóveis sem luz em São Paulo. Isso significa estoques perdidos de comida, sacrifícios para doentes, idosos e crianças, prejuízos para comércio e indústria. E não foi a primeira vez. A maior metrópole do país não pode parar a cada temporal.

É compreensível a indignação com a Enel pela inépcia evidente. Mas a cassação da concessão, se acontecer, não resolverá todos os problemas. As responsabilidades não estão restritas à empresa de energia, se estendem também ao poder público. Árvores doentes ou malcuidadas podem cair com mais facilidade diante de ventos fortes. Podas malfeitas tornam mais prováveis as quedas de galhos sobre a rede elétrica. Espécies mal escolhidas crescem demais e com frequência formam um emaranhado com os fios.

Há boas experiências na solução desses problemas. Desde 2023, a cidade de Santos, no litoral paulista, dispõe de um plano preventivo voltado para queda de árvores. O município também sofreu com os ventos fortes, mas não foram registrados apagões.

Em meio ao tiroteio sobre responsabilidades, a Prefeitura paulistana acusa a Enel, encarregada da poda onde há risco elétrico, de podar apenas 11% do total de árvores com que havia se comprometido. A Enel contesta os números e argumenta que há falhas no levantamento da Prefeitura.

Como os eventos climáticos extremos se tornaram mais intensos e frequentes, é provável que tempestades como a da semana passada voltem a castigar a cidade. Ainda que o rompimento do contrato (que vai até 2028) siga adiante e leve à cassação da concessão, isso não encerrará os transtornos. Se não houver uma política consistente de monitoramento, conservação e poda das árvores — em especial as que representam maiores riscos à rede elétrica —, o problema persistirá.

Indícios alarmantes de infiltração do crime no Rio

Por Folha de S. Paulo

Operações levam a prisões de expoentes do Legislativo e do Judiciário, como o então presidente da Alerj

Desembargador é suspeito de vazar informações em caso envolvendo deputado e facções, que também espalham pela economia em todo o país

Imbricações entre o crime organizado e o poder estatal não são exatamente uma novidade. É da própria natureza das quadrilhas tentar ocupar espaços de comando de que possam extrair vantagens. Entretanto uma série de ações policiais recentes no Rio de Janeiro, todas autorizadas pela Justiça, mostra que o problema parece maior e mais grave do que se poderia supor.

O presente ciclo de revelações começou em setembro, quando foi deflagrada a Operação Zargun. Ali foi preso o deputado estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva (MDB), conhecido como TH Joias e acusado de favorecimento de organização criminosa.

O suspeito teria intermediado compra e venda de drogas, fuzis e equipamentos antidrone, além de ter empregado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) a mulher de um notório traficante. Com TH Joias foram presas mais 14 pessoas, incluindo um delegado da Polícia Federal, um ex-secretário do governo do estado e três PMs. E a história está só começando.

A polícia desconfiou que TH Joias havia sido informado de que seria alvo de uma operação e se pôs a investigar o possível vazamento. Isso resultou na Operação Unha e Carne, que prendeu ninguém menos do que o então presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar (União Brasil), cotado para disputar o governo do estado na eleição do ano que vem.

Pelo que acreditam os policiais, foi Bacellar quem alertou o ex-deputado estadual da iminência da ação policial, dando-lhe tempo para se livrar de material incriminador. Depois, a Alerj votou corporativamente para reverter a prisão de Bacellar, mas ele não voltou a presidir a Casa.

Na Unha e Carne, as autoridades apreenderam o celular de Bacellar, o que gerou a Operação Unha e Carne 2 —resultando na prisão do desembargador federal Macário Ramos Júdice Neto, suspeito de ser a fonte primária dos vazamentos. Ele estaria jantando com o ex-presidente da Assembleia quando foi dado o fatídico telefonema para TH Joias.

Júdice Neto tem história no Judiciário. Passou 18 anos afastado do cargo por suspeita de venda de sentenças e foi reintegrado depois que o processo disciplinar a que respondia prescreveu. Daí foi automaticamente promovido a desembargador do TRF-2, por antiguidade no serviço.

Embora o nível de contaminação de estruturas de poder pelo crime pareça particularmente avançado no Rio de Janeiro, o fenômeno ocorre em todo o país. Espalha-se também para setores da economia privada, como se viu na paulistana Operação Carbono Oculto.

A hora de agir, com investigações e processos bem instruídos, é agora, pois quanto mais deixarmos o crime entranhar-se na política, na economia e nas instituições, mais difícil será ficarmos livres dele depois. Há um ponto crítico a partir do qual não se pode distinguir com clareza o que é Estado e o que é quadrilha. Não se pode atravessar esse limiar.

Acordo de Paris, dez anos depois

Por Folha de S. Paulo

Pacto dificilmente atingirá meta de manter alta da temperatura abaixo de 2ºC, mas futuro seria pior sem ele

Acordo influencia políticas públicas e investimentos; soberania nacional, com disputas geopolíticas e econômicas, é seu maior desafio

No dia 12 de dezembro de 2015, a diplomacia global alcançou feito notável no setor ambiental com a assinatura do Acordo de Paris, durante a COP21 na capital francesa.

O documento estabeleceu metas relativas à alta da temperatura atmosférica do planeta e a emissões de carbono, além da apresentação de planos periódicos de cada nação para alcançá-las.

De fato, a projeção do aquecimento global para as próximas décadas seria mais crítica sem o acordo, segundo o qual o aumento da temperatura média mundial deveria ser mantido abaixo de 2°C até 2100, preferencialmente até 1,5ºC. A ONG científica Climate Action Tracker estima que tal indicador chegaria a 3,6ºC em 2100 sem o pacto firmado na COP21; com ele, a 2,6ºC.

Resta claro que seu principal objetivo dificilmente será cumprido e que isso se deve à queima de combustíveis fósseis.

O banco de dados sobre emissões de carbono da Comissão Europeia mostra que, de 2015 a 2024, o indicador global pouco se alterou, indo de 54,8 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa para 54,9 bilhões —com pico de 57,1 bilhões em 2023.

Mesmo assim, é inegável que o Acordo de Paris tem servido de espinha dorsal para políticas públicas, decisões judicias e investimentos privados —como o barateamento de energias renováveis.

O acordo é voluntário, não possui normas vinculantes e, portanto, não há punições ou sanções internacionais. Os planos de cada país são apresentados por meio de contribuições nacionalmente determinadas (NDCs), atualizadas a cada cinco anos.

Tal desenho, por vezes criticado pela ausência de responsabilizações, foi estratégico para sua universalidade e aceitação, ao permitir operacionalização sob a pressão de soberanias nacionais. Tal pressão se intensifica no cenário atual, com disputas geopolíticas e protecionismos.

O retorno de rivalidades entre potências, como Estados Unidos e China e Rússia e União Europeia, fragmentam o multilateralismo.

No âmbito econômico, países em desenvolvimento enfrentam desafios para aliar crescimento com descarbonização, enquanto nações ricas lidam com pressões locais para direcionar recursos ao financiamento climático.

Não à toa, Laurence Tubiana, chefe da diplomacia francesa na COP21, disse à Folha que o Acordo de Paris não está falhando, ele "está sendo testado", já que "a soberania está sendo afirmada com mais força". Pelo futuro do clima do planeta, é preciso um esforço global para que o pacto ambiental histórico sobreviva ao teste.

O fim do pesadelo chamado Enel

Por O Estado de S. Paulo

Depois do terceiro apagão de longa duração em São Paulo, Enel é colocada na parede pelos governos federal, estadual e municipal. Vender a concessão para outra empresa é a melhor alternativa

Demorou, mas a paciência que o governo federal ainda tinha com a Enel São Paulo acabou de vez nesta semana. Após a passagem de um ciclone extratropical pela capital paulista e municípios vizinhos, a inaceitável demora da empresa em restabelecer o fornecimento de energia terminou com o reconhecimento, pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, de que a distribuidora perdeu as condições de se manter à frente da concessão.

Romper um contrato de concessão, no entanto, é uma medida extrema e, portanto, algo bem mais complicado do que o ministro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, fazem parecer. Cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) conduzir esse tipo de processo com cuidado, amparo técnico e amplo direito à defesa – não por leniência, mas por zelo com a segurança jurídica, imprescindível para assegurar um ambiente de negócios confiável para investidores.

De relevante, a Aneel anunciou que o blecaute da semana passada será avaliado pela agência no âmbito do termo de intimação contra a Enel São Paulo, aberto após o apagão de outubro do ano passado, também de grandes proporções e longa duração. Isso pode encurtar os trâmites burocráticos, que seriam ainda mais longos caso o processo começasse do zero, mas, ainda assim, serão meses até que haja uma recomendação de rescisão do contrato.

Uma vez concluída essa fase, o caso voltaria para as mãos do Ministério de Minas e Energia, que surpreenderá se seguir, pela primeira vez, a orientação do órgão regulador. Casos semelhantes envolvendo distribuidoras de energia no Amapá e no Amazonas, por exemplo, terminaram com as recomendações de caducidade de concessão emitidas pela Aneel devidamente ignoradas e engavetadas. O grupo italiano, de sua parte, assegura ter cumprido integralmente o contrato.

Independentemente do governo, o custo de cassar um contrato de concessão, ainda que a instrução do processo administrativo seja impecável, não é pequeno. Por outro lado, enquanto o processo se desenrola na esfera administrativa, a distribuidora precisa manter as atividades sabendo que provavelmente perderá o contrato, o que costuma deteriorar ainda mais os serviços até que a rescisão contratual seja formalizada e uma nova empresa seja selecionada em leilão.

Tendo em vista que a atuação da Enel já vem sendo bastante questionada, para os cidadãos paulistanos, esse seria um cenário desesperador. E é por isso que há quem veja na rara unidade demonstrada por Silveira, Tarcísio e Nunes, a despeito das rivalidades políticas, uma tentativa de forçar a Enel São Paulo a vender a concessão para outra empresa do setor elétrico – certamente haverá interessados – e encerrar a agonia do grupo italiano no País.

Foi o que aconteceu com a Amazonas Energia, comprada no ano passado pela Âmbar, empresa do grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. De quebra, a Enel ainda poderia sair no lucro, pois terá direito a indenização pelos investimentos realizados e ainda não amortizados até o fim do contrato, que se encerra em 2028.

Para as distribuidoras de energia, o expurgo do grupo italiano também pode cair bem, haja vista que a reputação da Enel não contribui para a imagem do setor. Das 19 empresas que pediram a renovação dos contratos por mais 30 anos, 15 receberam aval positivo por parte da Aneel, 2 já assinaram novos contratos com o governo e 2 ainda estão com processos pendentes, justamente a Enel São Paulo e a Enel Ceará.

Uma nova empresa ainda contaria com a boa vontade dos políticos e da população paulistana – ao menos até o próximo apagão causado por um evento climático extremo. Até lá, espera-se que a Prefeitura de São Paulo tenha executado um plano de manejo para lidar com as árvores da cidade, e que a Aneel tenha aprimorado seus mecanismos de regulação e fiscalização do setor, haja vista que nem a aplicação da maior multa de sua história foi capaz de corrigir a trajetória da Enel.

Para os paulistanos, que enfrentaram três apagões de grande impacto nos últimos três anos, basta de tantas desculpas.

A doutrina Trump em ação

Por O Estado de S. Paulo

A crescente pressão sobre Maduro serve como exemplo de como os EUA sob Trump pretendem impor seu poder à América Latina: sai a defesa dos valores liberais, entra a força bruta

A escalada entre os EUA e a Venezuela deixou de ser um episódio retórico ou um gesto tático. Ela se tornou o teste mais explícito até agora da política hemisférica de Donald Trump em seu segundo mandato – e um sinal de como Washington pretende exercer poder na América Latina. O destino de Nicolás Maduro é apenas parte da equação. O que está em jogo é o precedente que a Venezuela estabelece para a região.

A crise não nasce de um incidente isolado. Ela decorre de uma reinterpretação deliberada da Doutrina Monroe (“A América para os americanos”), combinada à nova Estratégia de Segurança Nacional da Casa Branca. O Hemisfério Ocidental passa a ser tratado como espaço de controle prioritário, onde a presença de China, Rússia, Irã e Cuba não é vista como competição legítima, mas como violação estratégica. A Venezuela surge, assim, como laboratório de uma política mais coercitiva: se Washington não impuser limites ali, sua credibilidade hemisférica se dissolve.

Esse movimento se encaixa numa lógica geopolítica mais ampla. Trump abandona a axiologia da ordem liberal e adota uma política clássica de grandes potências. A tolerância com a agressão russa na Ucrânia, a ambiguidade em relação a Taiwan e a agressividade na América Latina fazem parte do mesmo desenho: valores cedem lugar a esferas de influência. Para seus defensores, trata-se de realismo tardio; para seus críticos, de cinismo institucionalizado. Em ambos os casos, a Venezuela deixa de ser exceção e passa a ser sintoma.

O conflito também é enquadrado como questão de segurança nacional. Maduro foi indexado como “narcoditador” e seu regime como um Estado-cartel, o que legitimaria ações extraterritoriais, operações navais e ações secretas. A Venezuela se converte em campo de teste de uma doutrina de guerra híbrida contra o crime organizado. O problema é que os dados sobre o peso real do país no fluxo de drogas rumo aos EUA são menos conclusivos do que a retórica sugere – o que levanta dúvidas sobre o uso instrumental da narrativa antidrogas.

Migração e petróleo ajudam a explicar a pressão, mas não a determinam. Trump trata o êxodo venezuelano como ameaça de fronteira, embora sanções e instabilidade tendam a ampliá-lo no curto prazo. Já o petróleo venezuelano não é motor da escalada: os EUA não dependem dele. O interesse é estratégico: negar o recurso a rivais e condicionar politicamente o setor energético venezuelano. Em ambos os casos, são instrumentos, não causas centrais.

O ponto mais delicado permanece a mudança de regime. Há consenso de que Maduro pode cair; há profundo dissenso sobre o dia seguinte. A Venezuela é um Estado corroído, com Forças Armadas politicamente leais ao regime, porém institucionalmente degradadas, e com o monopólio da força diluído entre militares, milícias e redes criminosas. A doutrina Trump rejeita projetos de “reconstrução nacional”, mas não pode ignorar o vácuo de poder que a queda do regime criaria. Derrubar pode ser rápido; estabilizar, não.

Na região, o desconforto é evidente. Brasil, México e Colômbia rejeitam uma ação militar, mas têm pouco poder de veto. O custo diplomático imediato para Washington é baixo, reforçando a sensação de retorno à lógica do “quintal estratégico”. A América Latina assiste, mais uma vez, a uma crise que a afeta diretamente sem ser protagonista dela.

Trump não reivindica coerência democrática – e isso muda o debate. A ausência de hipocrisia pode parecer algo como uma virtude, mas não elimina riscos. A história latino-americana mostra que atalhos militares substituem política por coerção e costumam cobrar o preço depois. A questão não é defender a tirania de Maduro, mas reconhecer que a política de força raramente entrega a estabilidade que promete.

A crise entre EUA e Venezuela revela menos sobre Caracas do que sobre o mundo de Trump: a normalização das esferas de influência, o abandono da ordem liberal e a aceitação do caos como custo estratégico. O perigo não está apenas em errar na Venezuela, mas em transformar o hemisfério num espaço onde a força substitui a política, e onde os efeitos colaterais tendem a atravessar fronteiras.

Infiltração mafiosa

Por O Estado de S. Paulo

Prisão de desembargador federal no Rio mostra o alcance do crime organizado no Estado

Por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, a Polícia Federal (PF) prendeu na terça-feira passada o desembargador Macário Judice Neto, do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região (TRF-2), com sede no Rio. O magistrado é suspeito de ter vazado informações sigilosas da Operação Zargun, que levou à prisão do ex-deputado estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva (expulso do MDB), vulgo “TH Joias”, acusado de ter colocado o mandato na Assembleia Legislativa a serviço do Comando Vermelho.

A prisão de um desembargador federal é, por si só, um fato de extrema gravidade em qualquer democracia. No contexto de uma investigação policial sobre o vazamento de informações sigilosas para beneficiar uma das mais poderosas organizações criminosas em atividade no País, o fato ultrapassa o escândalo individual e assume contornos sistêmicos. É nesse sentido que a prisão de Judice Neto deve ser recebida, isto é, como um sintoma do grau de infiltração das organizações criminosas no Estado e dos riscos que isso representa para a sociedade fluminense e, por extensão, brasileira.

A Operação Zargun, deflagrada pela PF em setembro, visa justamente a apurar a nefasta interseção entre o crime organizado e o poder público no Rio. Já não restam dúvidas de que o Comando Vermelho, outras facções e milícias têm seus braços políticos, financeiros e judiciais espraiados pelo Estado para garantir uma proteção institucional que lhes permita expandir seus negócios ilícitos.

O crime organizado não se resume a traficantes ou milicianos armados até os dentes dominando territórios, aterrorizando cidadãos e corrompendo servidores públicos. Há uma rede sofisticada que opera nos bastidores do Executivo, do Legislativo e, agora sob suspeita, também do Judiciário. Isso não chega a ser novidade. Há décadas, o Rio convive com a corrosão progressiva de suas estruturas estatais. O que espanta é quão à vontade facções e milícias se sentem para se entranhar cada vez mais fundo nas instâncias do poder institucional.

A captura do Estado, ainda que parcial, é o grande objetivo de organizações criminosas de contornos mafiosos cada vez mais nítidos. É isso que lhes garante impunidade, previsibilidade – haja vista o vazamento de informações – e poder virtualmente ilimitado para combater seus inimigos, dentro e fora do Estado. Nesse cenário, a eventual cooptação de agentes públicos de alto escalão, como um desembargador federal, representa um salto qualitativo, digamos assim, no processo de sequestro institucional a que tem se dedicado o crime organizado.

O dano é particularmente mais severo quando as suspeitas recaem sobre a magistratura. Juízes são garantidores da legalidade, pilares da confiança social no Estado de Direito. Do ponto de vista simbólico, a simples percepção de que decisões judiciais ou informações sensíveis possam ser manipuladas em favor de criminosos, por óbvio, mina a credibilidade do sistema de Justiça e alimenta o ceticismo da população em relação às instituições. Na prática, enfraquece a capacidade do Estado de combater as organizações criminosas. E sem a força do Estado, o que resta à sociedade?

Argentina ajusta sistema cambial em busca de dólares

Por Valor Econômico

Porém, a aceleração na desvalorização da moeda pode reduzir o ritmo de declínio da inflação, que deu cacife político decisivo ao novo governo

O governo de Javier Milei deu um passo que havia prometido não dar e mexeu no sistema de bandas cambiais. Após uma vitória clara nas eleições de meio de mandato, em outubro, conquistando uma posição de peso no Legislativo, Milei insistiu a princípio em que não havia nada errado com o esquema de correção do teto e do piso da variação da moeda diante do dólar em 1% ao mês. Mas a escassez de dólares quase o fez ser derrotado nas eleições, com valorizações fortes do peso, além de escândalos nas hostes governistas e erros políticos eleitorais que fizeram os prognósticos de desastre iminente se abater sobre o governo. A rejeição dos eleitores aos peronistas, principal partido de oposição, foi mais forte, e o Liberdade Avança oficialista ganhou musculatura no Congresso.

O Banco Central anunciou anteontem que a partir de janeiro a banda cambial variará de acordo com a inflação de dois meses antes, o que pelo ritmo da evolução atual dos preços, um pouco acima de 2%, significa que a desvalorização da moeda será acelerada. O principal temor do governo com deslizamento maior no câmbio era pôr a perder o grande declínio inflacionário, que deu cacife político decisivo ao novo governo. Em dezembro de 2023, quando Milei assumiu, o índice de preços ao consumidor foi de 25,5% no mês e 211% em 12 meses. A maxidesvalorização inicial, seguida de um congelamento virtual, derrubou a inflação a 2,5% em novembro, enquanto que a de 12 meses foi de 31,4%.

Peso valorizado derruba os preços, mas tem várias contraindicações em geral, e outras particulares no caso argentino. A Argentina não tem reservas internacionais, e as que possui são fruto do maior acordo de ajuda já feito pelo Fundo Monetário Internacional com um país, de US$ 45 bilhões. Retirando obrigações, elas ainda são negativas. Por isso, uma das metas fixadas na extensão do acordo com o Fundo, que emprestou mais US$ 20 bilhões à Argentina, foi a de recomposição das reservas, que o regime de câmbio semifixo impediu Milei de cumprir até agora e o obrigou a pedir waiver na última revisão periódica do entendimento.

Sem reservas e com o peso valorizado, as importações explodiram, o saldo comercial, única fonte garantida de dólares, minguou, e a pressão pela desvalorização seguiu outro caminho que não a via do aumento de preços — o da penúria de divisas fortes.

O governo fez a escolha realista por um caminho intermediário, diante da demanda de cumprimento da promessa eleitoral de 2023, de liberação total do câmbio, ainda reivindicada por empresas e analistas privados. Haverá alguma pressão sobre os preços domésticos no curto prazo em um momento em que a inflação ainda não está domada, mas sob controle diante da baixa temperatura da economia. A Argentina cresceu 3,3% no terceiro trimestre do ano, mas a base de comparação é baixa, e não tem havido aceleração das atividades econômicas. O risco de uma nova escalada inflacionária ainda é baixo.

O governo se comprometeu a comprar US$ 10 bilhões para formar reservas no ano. O plano é injetar pesos correspondentes na economia sem esterilizá-los, isto é, sem enxugar essa oferta com a emissão de títulos públicos. Como um dos motivos principais de contenção da inflação foi a interrupção da emissão monetária pelo Banco Central, que não teve mais de cobrir os enormes déficits públicos, a esperança da equipe de Milei é a de que o câmbio se valorize.

Um dos desafios dos governos argentinos é tornar o peso confiável. A moeda argentina é o dólar, para onde correm todas as economias ao menor sinal de elevação dos preços ou de instabilidade política. Para isso, o BC teve de elevar acima de 100% a taxa de juros nominal no início do governo, e hoje ela está em 29%, em linha com a inflação no ano, de 27,9%. Manter a inflação baixa é a melhor forma de fortalecer a moeda, mas isso leva tempo em um país que conviveu por muito tempo com uma inflação crônica.

Para deter as fontes de emissão, o governo Milei obteve o primeiro superávit primário anual em mais de uma década, interrompeu por completo os investimentos públicos, corrigiu as aposentadorias abaixo da inflação, aumentou as tarifas públicas, eliminou subsídios e jogou pesado para que os acordos salariais não fossem corrigidos plenamente pela inflação passada. O resultado, porém, foi um crescimento débil, sem que haja um motor claro a impulsionar a expansão. Milei acredita que desregulamentação radical, mais reformas, como a de impostos e trabalhista, fará por si só com que o crescimento venha por meio dos investimentos privados. Mas isso ainda não aconteceu.

O governo conta com a reação da balança comercial e os investimentos em petróleo e energia para alavancar as atividades. A correção cambial prometida ajudou a reduzir o risco-país a um dos menores níveis desde 2018 (550 pontos, ante 193 do Brasil), assim como a vitória eleitoral governista. Sem crescimento, porém, o investimento externo não virá, e este é um enorme ponto de interrogação sobre o sucesso das reformas liberais de Milei.

Cerco à Venezuela é alerta para toda a região

Por Correio Braziliense

Reconhecido como um articulador estratégico na região, o Brasil precisa estar atento aos sinais e às investidas trumpistas para não comprometer sua importância diplomática e os interesses nacionais

Anunciado na noite de terça-feira, o cerco naval completo da Venezuela pelas Força Armadas dos Estados Unidos, nas palavras do presidente Donald Trump, é mais um capítulo da escalada da tensão entre os dois países desde que o republicano voltou à Casa Branca e sinal inequívoco de que não se trata de um embate restrito às duas nações. A ofensiva da "maior Armada já reunida na história da América do Sul" faz parte de uma jogada estratégica do líder norte-americano para recompor a influência do seu país nas Américas e conter o avanço de potências rivais. Se não pretendem ser meros observadores, os outros atores desse tabuleiro político precisam redefinir ou afinar seus movimentos.

De forma prática, o bloqueio deve impedir que cargueiros de petróleo não ligados à Chevron, que é dos EUA, entrem e saiam da Venezuela. A Armada seguirá pressionando Caracas até que "devolvam todo o petróleo, terras e outros recursos que roubaram de nós", também segundo Trump. A mensagem escrita em sua rede social, porém, não deixa claro a que desfalques ele se refere. Também falta ser mais consistente quanto à afirmação de que o regime de Maduro atua como uma organização narcoterrorista que envia quantidade volumosa de cocaína aos cartéis mexicanos que abastecem o território estadunidense.

Especialistas em segurança pública não reconhecem essa participação expressiva da Venezuela no tráfico internacional de drogas. A edição mais recente do Relatório Mundial sobre Drogas da ONU, divulgada neste ano, sequer tem a Venezuela entre os países da região que mais participam da produção e comercialização do mercado global dessas substâncias ilícitas. São eles: Peru, México, Colômbia e Bolívia. 

Não são exagerados, portanto, a leitura de que a nova versão da  "guerra às drogas" se trata de um pretexto para pôr em prática intervenções com outros fins e o entendimento de que a ofensiva trumpista atropela preceitos do direito internacional. Vale lembrar que os venezuelanos abrigam as maiores reservas de petróleo do mundo e têm como principal comprador a China, que já é considerada o segundo maior parceiro comercial da América Latina e Caribe, atrás apenas dos EUA.

Nesse sentido, a presidente do México, Claudia Sheinbaum, acerta ao reiterar que a soberania do seu país precisa ser respeitada. Trump vem afirmando que considera deflagrar no país vizinho uma ofensiva similar à que está em curso no Pacífico e no Caribe. Diferentemente da Venezuela, o México tem uma história de enfrentamento ao narcotráfico. 

A preocupação também se volta ao Brasil, que discute a equiparação das facções criminosas a grupos terroristas. Integrantes da cúpula do Exército e outros especialistas alertam que a medida cria o risco de interferência externa. Isso em meio, também nesta terça, à assinatura de um pacto entre Estados Unidos e Paraguai que prevê  a atuação de soldados estadunidenses no país sul-americano para coibir o que consideram grupos terroristas. Não será surpresa se outros países da região alinhados ao republicano firmarem acordos semelhantes.  

Em ligação recente, o presidente Lula disse ter afirmado a Trump que a América Latina é "um zona de paz" e que o "poder das palavras, não o das armas" é o mais eficaz para a resolução de problemas. Segundo o brasileiro, o chefe da Casa Branca teria respondido: "Eu tenho mais armas, eu tenho mais navios, eu tenho mais bombas". Reconhecido como um articulador estratégico na região, o Brasil precisa estar atento aos sinais e às investidas trumpistas para não comprometer sua importância diplomática e os interesses nacionais.

Corte Suprema quebra ciclo de impunidade

Por O Povo (CE)

As instituições brasileiras enfrentaram com destemor pressões violentas, mostrando-se à altura de uma tarefa histórica.

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, nesta terça-feira, um julgamento que fez por merecer a classificação de histórico. Foi um acontecimento sem precedentes no Brasil, que levou ao banco dos réus 31 pessoas, condenando 29 delas por participarem de uma organização que tentou dar um golpe de Estado no Brasil. O plano incluía o assassinato do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF, Alexandre de Moraes.

A maioria dos réus foi sentenciada por cinco crimes: tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, participação em organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. O ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, recebeu a pena mais alta, condenado a 27 anos e três meses de prisão, em regime inicialmente fechado.

Outro feito inédito foi romper uma longa sequência de impunidade aos militares que participam de quarteladas para, em seguida, receberem perdão ou anistia por seus crimes. Criou-se assim um sentimento de que a farda os protege, incentivando a repetição de aventuras golpistas. Esse círculo vicioso foi rompido pelo STF, com a condenação de duas dezenas de militares, incluindo oficiais de altas patentes, entre eles coronéis, generais e um almirante.

Internamente, os aliados do ex-presidente promoveram uma série de ataques à Corte Suprema visando desqualificar o julgamento, com argumentos sem nenhuma base na realidade. Bolsonaro e seus aliados negavam a existência de uma trama golpista, sob o falso argumento de que tudo não passava de perseguição política, apesar das evidências expostas nos processos. Algumas dessas provas foram produzidas pelos próprios condenados, como a "minuta do golpe" e o documento "Punhal verde e amarelo", no qual se descreviam ações para monitorar e eliminar adversários políticos.

Mas agiram também externamente contra os interesses do País, para atender a interesses familiares. Com esse propósito, incentivaram o governo dos Estados Unidos a impor um "tarifaço" para prejudicar as exportações brasileiras. Além disso, foram artífices da iniciativa visando atingir diretamente o STF, com a imposição da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes.

As instituições brasileiras — especialmente a Polícia Federal, STF, Procuradoria-Geral da República —, enfrentaram com destemor essas pressões violentas, mostrando-se à altura de uma tarefa indeclinável: a de identificar e levar à Justiça aqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito, em um julgamento exemplar, nos termos das leis que regem uma democracia, que uma organização criminosa armada pretendia golpear.

 

 

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