ESTRANGEIROS, POBRES E VALORES
Fábio Wanderley Reis
A União Européia vem de produzir duas notícias de importância. A primeira é o referendo realizado na Irlanda no dia 12 de junho, em que o país se negou a ratificar o Tratado de Lisboa, o que resulta em impedir que ele tenha efeito. A segunda é a aprovação no dia 7 de julho, em Cannes, do esboço do Pacto Europeu de Asilo e Imigração, que endurece a postura dos países do bloco perante os imigrantes e transforma em crime a imigração ilegal (apesar de terem sido suavizados certas propostas iniciais do governo francês tornando obrigatórios o aprendizado do idioma local e a adoção de "valores europeus"). Embora se trate de assuntos diversos, há conexões relevantes.
É claro que a segunda notícia tem ressonâncias muito mais dramáticas para nós, latino-americanos, dado que nossos viajantes, mesmo com os papéis em ordem, já vêm sendo com frequência recebidos como criminosos em aeroportos europeus diante da simples presunção, pelas autoridades responsáveis, de que se trata de imigrantes. Mesmo pobres, porém, os latino-americanos provêm, quando nada, de países amplamente constituídos pelo colonialismo europeu e portadores, portanto, em medida importante, de sua cultura (não obstante o empenho de certas análises em separar uma peculiar "civilização latino-americana" do "Ocidente" - análises que às vezes se mostram ambíguas quanto ao caráter "ocidental" até de Espanha e Portugal...). Mas a feição dramática dos problemas postos pela imigração se reforça pelo fato de que em muitos casos, com ligações coloniais prévias ou não, trata-se de imigrantes provenientes de culturas não só claramente diferentes das dos países receptores, mas que chegam até a hostilizá-las - e a serem percebidas como hostis pelas populações hospedeiras, o que favorece e intensifica os preconceitos e suspeitas.
As torturadas reflexões a respeito se ilustram com um pequeno volume de Giovanni Sartori, "A Sociedade Multiétnica", publicado em 2001. Sartori, postado firmemente numa tradição liberal e pluralista, enfrenta com ardor as distorções "multiculturalistas" dessa tradição. Tais distorções, que brotam nos Estados Unidos mas se fazem presentes também na Europa, representariam pontos de referência intelectuais para uma disposição empenhada no reconhecimento igualitário e na integração a todo custo das populações e etnias diversas, incluídas, naturalmente, as dos imigrantes.
Assimilação cultural e desigualdade regional
O referendo irlandês quanto ao Tratado de Lisboa (na esteira, aliás, do rechaço francês e holandês, em 2005, do Tratado Constitucional europeu) surge de imediato apenas como um tropeço adicional no esforço de fôlego e amplamente bem-sucedido de construção de uma Europa integrada. Mas a questão fundamental envolvida não deixa de ser afim aos problemas da imigração. Pois, referindo-se às relações entre as nações, de um lado, e uma comunidade multinacional, de outro, a questão é aqui também a do convívio entre culturas e identidades diversas e do equilíbrio entre identidade e diferença. E, num caso como no outro (embora, de novo, com graus diversos de dramaticidade), o tema de identidade e diferença, que as reflexões de ciência política tratam há tempos em termos de "assimilação" cultural, se combina com problemas de assimetria e estratificação. Não admira que Jürgen Habermas, em artigo há pouco reproduzido pela Folha de S.Paulo ("Europa com Medo do Povo", caderno Mais, 29 de junho), associe o resultado do referendo irlandês à necessidade de fazer política em nível europeu, de forma a recuperar a visão de uma "Europa social", dar credibilidade aos partidos socialdemocratas e evitar excluir, "de saída e por princípio, qualquer alternativa ao liberalismo de mercado".
A discussão de Sartori apresenta clara proximidade, às vezes, com as idéias de Samuel Huntington sobre a "latino-americanização" dos Estados Unidos em decorrência da onda atual de imigrantes latinos. Mas informadas discussões provocadas por Huntington mostram nada haver de peculiar, ao cabo, na onda atual com respeito às ondas anteriores de imigração irlandesa, judaica ou italiana, que resultaram em assimilação plena. Certamente os Estados Unidos como país têm se transformado com as mudanças demográficas de vários tipos. Mas os indícios são antes de fortalecimento da tradição de pluralismo democrático.
Esse é o ponto crucial. Não parece caber dúvida, na avaliação e no enfrentamento dos problemas gerais em questão, quanto ao papel orientador a esperar dos valores pluralistas e liberais de tolerância e individualismo e da neutralização da relevância de traços "adscritícios" impostos pelo nascimento, ou seja, os valores pelos quais Sartori se bate. E é difícil sustentar que a comunidade pluralista seja aberta aos que não se abram para ela.
Tudo somado, porém, a reiteração da importância dos valores pluralistas não pode levar a que se perca de vista o condicionamento material do êxito da eventual "assimilação" cultural. Afinal, há muito (muito antes de Disraeli quanto à Inglaterra) as diferenças de classe permitem que se fale de "duas nações", a dos ricos e a dos pobres, quase de todo apartadas culturalmente uma da outra. E a perspectiva que surge daí traz lições importantes para um Brasil em que integrantes destacados do Judiciário falam destemperadamente em defesa dos direitos civis de criminosos de colarinho branco e silenciam sobre a violência que a cada dia compromete radical e tragicamente os mais comezinhos direitos dos cidadãos de segunda classe. Com todo o importante papel de nossas cortes de Justiça, especialmente o STF, como revisoras e co-produtoras de políticas públicas em áreas diversas, muito de nosso futuro pode depender, como sugere estudo que Matthew M. Taylor acaba de publicar ("Judging Policy", 2008), do grau em que consigamos tornar efetivo o acesso igualitário à Justiça.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Fábio Wanderley Reis
A União Européia vem de produzir duas notícias de importância. A primeira é o referendo realizado na Irlanda no dia 12 de junho, em que o país se negou a ratificar o Tratado de Lisboa, o que resulta em impedir que ele tenha efeito. A segunda é a aprovação no dia 7 de julho, em Cannes, do esboço do Pacto Europeu de Asilo e Imigração, que endurece a postura dos países do bloco perante os imigrantes e transforma em crime a imigração ilegal (apesar de terem sido suavizados certas propostas iniciais do governo francês tornando obrigatórios o aprendizado do idioma local e a adoção de "valores europeus"). Embora se trate de assuntos diversos, há conexões relevantes.
É claro que a segunda notícia tem ressonâncias muito mais dramáticas para nós, latino-americanos, dado que nossos viajantes, mesmo com os papéis em ordem, já vêm sendo com frequência recebidos como criminosos em aeroportos europeus diante da simples presunção, pelas autoridades responsáveis, de que se trata de imigrantes. Mesmo pobres, porém, os latino-americanos provêm, quando nada, de países amplamente constituídos pelo colonialismo europeu e portadores, portanto, em medida importante, de sua cultura (não obstante o empenho de certas análises em separar uma peculiar "civilização latino-americana" do "Ocidente" - análises que às vezes se mostram ambíguas quanto ao caráter "ocidental" até de Espanha e Portugal...). Mas a feição dramática dos problemas postos pela imigração se reforça pelo fato de que em muitos casos, com ligações coloniais prévias ou não, trata-se de imigrantes provenientes de culturas não só claramente diferentes das dos países receptores, mas que chegam até a hostilizá-las - e a serem percebidas como hostis pelas populações hospedeiras, o que favorece e intensifica os preconceitos e suspeitas.
As torturadas reflexões a respeito se ilustram com um pequeno volume de Giovanni Sartori, "A Sociedade Multiétnica", publicado em 2001. Sartori, postado firmemente numa tradição liberal e pluralista, enfrenta com ardor as distorções "multiculturalistas" dessa tradição. Tais distorções, que brotam nos Estados Unidos mas se fazem presentes também na Europa, representariam pontos de referência intelectuais para uma disposição empenhada no reconhecimento igualitário e na integração a todo custo das populações e etnias diversas, incluídas, naturalmente, as dos imigrantes.
Assimilação cultural e desigualdade regional
O referendo irlandês quanto ao Tratado de Lisboa (na esteira, aliás, do rechaço francês e holandês, em 2005, do Tratado Constitucional europeu) surge de imediato apenas como um tropeço adicional no esforço de fôlego e amplamente bem-sucedido de construção de uma Europa integrada. Mas a questão fundamental envolvida não deixa de ser afim aos problemas da imigração. Pois, referindo-se às relações entre as nações, de um lado, e uma comunidade multinacional, de outro, a questão é aqui também a do convívio entre culturas e identidades diversas e do equilíbrio entre identidade e diferença. E, num caso como no outro (embora, de novo, com graus diversos de dramaticidade), o tema de identidade e diferença, que as reflexões de ciência política tratam há tempos em termos de "assimilação" cultural, se combina com problemas de assimetria e estratificação. Não admira que Jürgen Habermas, em artigo há pouco reproduzido pela Folha de S.Paulo ("Europa com Medo do Povo", caderno Mais, 29 de junho), associe o resultado do referendo irlandês à necessidade de fazer política em nível europeu, de forma a recuperar a visão de uma "Europa social", dar credibilidade aos partidos socialdemocratas e evitar excluir, "de saída e por princípio, qualquer alternativa ao liberalismo de mercado".
A discussão de Sartori apresenta clara proximidade, às vezes, com as idéias de Samuel Huntington sobre a "latino-americanização" dos Estados Unidos em decorrência da onda atual de imigrantes latinos. Mas informadas discussões provocadas por Huntington mostram nada haver de peculiar, ao cabo, na onda atual com respeito às ondas anteriores de imigração irlandesa, judaica ou italiana, que resultaram em assimilação plena. Certamente os Estados Unidos como país têm se transformado com as mudanças demográficas de vários tipos. Mas os indícios são antes de fortalecimento da tradição de pluralismo democrático.
Esse é o ponto crucial. Não parece caber dúvida, na avaliação e no enfrentamento dos problemas gerais em questão, quanto ao papel orientador a esperar dos valores pluralistas e liberais de tolerância e individualismo e da neutralização da relevância de traços "adscritícios" impostos pelo nascimento, ou seja, os valores pelos quais Sartori se bate. E é difícil sustentar que a comunidade pluralista seja aberta aos que não se abram para ela.
Tudo somado, porém, a reiteração da importância dos valores pluralistas não pode levar a que se perca de vista o condicionamento material do êxito da eventual "assimilação" cultural. Afinal, há muito (muito antes de Disraeli quanto à Inglaterra) as diferenças de classe permitem que se fale de "duas nações", a dos ricos e a dos pobres, quase de todo apartadas culturalmente uma da outra. E a perspectiva que surge daí traz lições importantes para um Brasil em que integrantes destacados do Judiciário falam destemperadamente em defesa dos direitos civis de criminosos de colarinho branco e silenciam sobre a violência que a cada dia compromete radical e tragicamente os mais comezinhos direitos dos cidadãos de segunda classe. Com todo o importante papel de nossas cortes de Justiça, especialmente o STF, como revisoras e co-produtoras de políticas públicas em áreas diversas, muito de nosso futuro pode depender, como sugere estudo que Matthew M. Taylor acaba de publicar ("Judging Policy", 2008), do grau em que consigamos tornar efetivo o acesso igualitário à Justiça.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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