sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O dono da voz:: Maria Cristina Fernandes

Com uma voz mais rouca e fraca que a habitual, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva surgiu de preto no quarto do hospital Sírio-Libanês em vídeo divulgado na terça-feira pelo instituto que leva seu nome (www.icidadania.org). Ao lado da mulher, agradeceu, durante dois minutos, as mensagens de solidariedade que vem recebendo.

Desde que foi anunciado, no sábado, que o ex-presidente tem um tumor maligno na laringe a reação popular adquiriu vários matizes. A grande maioria, e não é preciso uma pesquisa de opinião para constatá-lo, solidarizou-se com Lula. Uma parcela pequena, mas ruidosa, de brasileiros exorcizou a pequenez de sua própria índole e a incivilidade de suas convicções com regojizo estridente.

É à luz da solidariedade de milhões com o maior líder popular da história brasileira que sua fala merece ser revisitada. Difícil imaginar que Lula pudesse vir a se despir da política mesmo num momento de fragilidade física e emocional. Se o apego à política lhe aumenta o apetite pela vida, é de se esperar até que seus médicos acolham o efeito terapêutico de uma relação estreitada entre o líder e o povo que governou.

"Temos que lutar; foi para isso que vim à terra"

O vídeo, no entanto, extrapolou o agradecimento. Mostrou que está em curso, capitaneada pelo próprio enfermo, a sacralização do mito. Lula se disse portador de uma missão na terra: "Nenhum ser humano pode se deixar vencer por uma dor ou por um câncer. Temos que lutar. Foi para isso que vim à terra. Para lutar e para melhorar a vida de todo mundo".

A autoridade moral de quem enfrenta um tratamento de câncer decorre com naturalidade. Em Lula, a biografia lhe autoriza em acréscimo dizer que não será a primeira nem a última batalha de sua vida, muitas das quais travadas nos corredores de hospitais públicos.

O ex-presidente incorporou de tal maneira a autoridade moral da enfermidade que, no vídeo, era o telespectador que parecia estar sob tratamento. Olhando sério para a câmera, disse: "Preste atenção numa coisa, sem perseverança, sem muita persistência e sem muita garra a gente não consegue nada".

Lula foi além. Naquele momento, depois de suas primeiras 24 horas de quimioterapia, levantou-se para pedir que os brasileiros apoiem e ajudem a presidente Dilma Rousseff: "É inexorável que o Brasil se transforme num grande país".

Estava ali para agradecer e foi da gratidão como moeda política que tratou. Em seu primeiro pronunciamento depois da notícia do câncer, o líder enfermo e redentor pede apoio à sucessora que elegeu. Se alguma dúvida havia sobre o compromisso entre criador e criatura, a doença o torna cada vez mais indissolúvel.

Ao final da gravação, Lula dirige-se aos petistas: "Tô doido para falar uns companheiros e companheiras mais fortes. Até a primeira assembleia, até o primeiro comício, até o primeiro ato público".

Antes de ter o tumor diagnosticado, Lula vinha operando ativamente na montagem dos palanques municipais governistas. Como se sabe agora, poucas horas antes de gravar a mensagem havia incumbido Dilma de negociar a desistência da pré-candidatura da senadora Marta Suplicy à Prefeitura de São Paulo.

A postulação de Marta vinha sendo desidratada há muito tempo. Com base em pesquisas que demonstravam um teto para a prefeita no eleitorado paulistano, seus ex-secretários municipais já tinham abandonado seu barco e os petistas que permaneciam ao seu lado pareciam estar ali com a missão de barganhar espaço na campanha do ministro da Educação, Fernando Haddad.

Não estava, portanto, descartada a possibilidade de desistência, a despeito do tumor de Lula. Mas a doença revestiu o pedido, feito 48 horas depois do diagnóstico do presidente, de outros significados. O primeiro é de que não há como o partido se recusar a atender ao seu líder enfermo. O outro é revelado pela escolha da mensageira.

Lula não incumbiu um dirigente do PT, nem José Dirceu, eterno herói da militância petista, para negociar com Marta, mas a própria presidente da República.

Além da possibilidade de a senadora petista poder vir a ser incorporada no primeiro escalão do governo, a missão de Dilma revela, para quem, no PT, ainda não havia percebido, que a presidente é, de fato e de direito, sua sucessora. É um recado claro e direto para os petistas de São Paulo, generais de brigada da luta interna.

No meio médico de São Paulo há pouca discordância sobre as chances de cura do ex-presidente, ainda que grassem divergências sobre eventuais impactos sobre sua voz decorrentes da decisão de se adiar a cirurgia com o recurso à quimio e à radioterapia.

É com essas indefinições que Lula joga ao se reposicionar, dentro e fora do PT, em função da doença.

A decisão de tornar público o câncer marca notável diferença em relação aos subterfúgios do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ao lidar com o seu e usá-lo para se perpetuar no poder.

Lula já deu demonstrações suficientes de apego à democracia para ser comparado com Chávez. Já transferiu a faixa, mas ainda é o dono da voz. Ninguém se comunica melhor que ele. Mas o risco, ainda que remoto, de que esse poder de comunicação venha a ser afetado, não autoriza a mistificação.

Não dá para esperar que Lula deixe de fazer política enquanto durar seu tratamento. O ex-presidente teria tudo para sair da doença como o cabo eleitoral de uma grande campanha nacional pela melhoria da saúde pública brasileira. Seria a melhor resposta à vilania do "Lula no SUS", além de retribuição à altura da solidariedade popular.

Enquanto presidente, Lula não investiu na saúde pública como deveria, como tampouco o fizeram todos os que o antecederam e que também continuam a se tratar nos melhores hospitais do país. A oportunidade que se abre para sua liderança é que, curado pelo Sírio-Libanês, Lula ponha sua voz a serviço do SUS.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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