A poupança perdeu a simplicidade. Haverá duas regras para os novos depósitos: uma para quando a Selic ficar acima de 8,5%, outra para quando ela chegar a esse ponto ou cair mais. Para os depósitos feitos até ontem, nada muda. Agora, são três fórmulas, antes era apenas uma e simples. Além disso, a demora em confirmar o que até recentemente era negado pelo governo criou ruído.
Ninguém duvida do ponto defendido ontem pelo Banco Central em nota de apoio à mudança: esse passo era necessário para o avanço do processo de estabilização, que exige novos passos na desindexação. Só que este é um governo que tem indexado mais, como fez com o salário mínimo.
A caderneta de poupança tem que ser segura e simples porque é um produto centenário e de massa. Por isso, uma regra de ouro é nunca deixar ventilar ou deixar o disse me disse nesse tema. As mudanças são pensadas primeiro, amadurecidas depois, e, por fim, anunciadas. É preciso atentar para o fato de que se para o poupador é um produto simples, a engenharia que o sustenta é complexa e tem reflexos na economia.
A decisão de mudar a fórmula quando os juros subirem reduz muito o risco de descasamento de passivo das instituições financeiras. Mesmo assim, um estoque que está hoje em R$ 430 bilhões continuará sendo remunerado a uma taxa que ficará acima dos fundos atrelados a títulos públicos. Permanece o risco de descasamento se houver queda forte dos juros na concessão dos empréstimos imobiliários. O que significa que a permanência de regras variadas acabará impedindo que a queda geral dos juros seja repassado para o crédito imobiliário.
É bom chegar ao ponto de discutir como abrir caminho para derrubar mais a taxa Selic, mesmo assim, mudanças em caderneta lembram sempre o incurável trauma do Plano Collor.
Assim que sentei, ontem de manhã, na poltrona do avião, o passageiro do lado se apresentou: tem 73 anos, mora numa chácara no sul de Minas, perguntou como seria a mudança da caderneta e começou a falar do Plano Collor como se fosse ontem. A primeira coisa que expliquei é que evidentemente não era confisco, mas apenas mudança na maneira de calcular o rendimento.
O ministro Guido Mantega negou há apenas 15 dias que estivesse estudando o assunto. Não precisava ser um gênio das finanças para antecipar que algo seria feito. A remuneração dos fundos de investimento estava próxima da caderneta, levando-se em conta a não incidência do Imposto de Renda e das taxas de administração.
A proposta havia sido discutida quando a Selic chegou a 8,75%, no final de 2009, mas o ano eleitoral de 2010 se aproximando fez o assunto ser adiado. Logo depois, a elevação da inflação exigiu juros maiores e o problema hibernou. Voltou agora porque a inflação em queda permite nova redução das taxas de juros e a regra da poupança acabava criando um piso a partir do qual a Selic não poderia mais cair.
Há quem pergunte: por que a poupança pode perder durante tanto tempo de outras aplicações e o inverso não pode ocorrer? Pergunta justa. As características dos produtos são bem diferentes. Os fundos DI, fundos de renda fixa, compram títulos públicos com o dinheiro dos aplicadores e isso faz com que sejam necessários para manter o financiamento da dívida. A poupança tem que aplicar 65% de tudo o que capta no mercado imobiliário.
Agora haverá a caderneta e a caderneta do B. A primeira, a velha, poderá ganhar bastante e se tornar a melhor aplicação, quando os juros caírem mais fortemente. O que significa que se deu bem neste momento quem migrou para a poupança. A segunda, a nova caderneta, a que começa a partir de hoje, perderá sempre da Selic. Quando ficar abaixo de 8,5%, receberá 70% da taxa. Se ela subir muito para enfrentar alguma onda inflacionária, volta-se a 6% mais TR.
O economista Carlos Thadeu de Freitas acha que o governo terá que enfrentar outras batalhas difíceis, como a da indexação do salário mínimo e dos aluguéis, se quiser completar o trabalho da desindexação da economia. Mas dificilmente o governo seria capaz de fazer isso, já que indexou duplamente o reajuste do mínimo, ao crescimento do PIB e à inflação.
O economista Alexandre Schwartsman acha que o ideal seria liberar completamente a caderneta para que cada banco apresentasse a sua taxa de remuneração e houvesse mais competição entre as várias instituições, como acontece em outras aplicações. Mas ele diz que esse "ideal" o governo não tem coragem de fazer porque afeta a popularidade.
A presidente está aproveitando o período de alta popularidade para mudar a forma de remuneração da caderneta de poupança. Está aplicando parte do seu capital político. Por isso, iniciou imediatamente antes a batalha do spread. A batalha era necessária. Os bancos sub-remuneram as aplicações e cobram demais na concessão de crédito. Quanto à poupança alguma mudança era necessária, mas a medida complicou o que era simples para o poupador.
FONTE: O GLOBO
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