Cleide Carvalho
SÃO PAULO — Ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Renato Maluf diz que o planeta não aguentará a expansão do atual modelo do agronegócio, baseado em monoculturas, porque gera enormes gastos com deslocamento de produtos a grandes distâncias. Para o especialista, que concedeu entrevista por e-mail ao GLOBO, essa não é a melhor nem a única maneira de alimentar o mundo.
O Brasil conseguiu vencer a fome?
RENATO MALUF: A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar estima em pouco menos de um terço os domicílios com algum grau de insegurança alimentar medido pela percepção das próprias pessoas. Menos de 10% das famílias têm insegurança grave.
Quais as diferenças entre a miséria e a fome nas áreas rurais e urbanas?
MALUF: A fome nas áreas rurais é um paradoxo típico de sociedades muito desiguais e injustas, nas quais as famílias rurais não são capazes de produzir sequer seu próprio alimento por falta de terra ou terra de má qualidade ou pela fragilidade frente a adversidades do meio, clima etc. Nas áreas urbanas, elas expressam a incapacidade de acesso motivada pela pobreza resultante do desemprego, da má remuneração e da falta de acesso a serviços públicos básicos.
O que é padrão de consumo alimentar insustentável?
MALUF: É um padrão que leva ao sobreuso dos recursos naturais. Basta olhar os grandes campos de soja e milho produzidos pelo Brasil, e que implicam grande desperdício em toda a cadeia e enorme gastos de energia com o deslocamento dos produtos a grandes distâncias.
O fato de a produção agrícola brasileira ser maior do que o consumo interno de alimentos é uma distorção?
MALUF: Não por isso, já que o país é um grande exportador de produtos agroalimentares. A distorção está no modelo agrícola predominante da monocultura de grande escala, utilizador de transgênicos e que converteu o Brasil no $mercado mundial de agrotóxicos. Ele é insustentável, causa danos ambientais e à saúde humana, além de ser uma das raízes históricas da nossa desigualdade social.
Qual a falha desse modelo?
MALUF: Há um argumento falacioso de projetar o aumento futuro da demanda por alimentos em razão do crescimento populacional e da renda, e que esse aumento requereria a continuidade do modelo atual como se ele fosse o único capaz de alimentar a população mundial. Esse modelo está mais do que condenado pelos estudos que tratam dos seus impactos ambientais e sociais. É preciso apoiar fortemente a agricultura de base familiar e camponesa, de base agroecológica, valorizando a diversidade ambiental, regional e cultural que nos caracteriza. Há que caminhar na direção inversa da atual, aproximando a produção do consumo de alimentos.
Há conflitos entre o agronegócio para exportação e a agricultura familiar?
MALUF: Há conflitos territoriais e pela terra entre a monocultura de grande escala e a agricultura de base familiar e camponesa, de onde provém a maior parte dos alimentos que consumimos, em diferentes graus, segundo as regiões do país.
Os exportadores tendem a equiparar os preços do mercado interno aos de exportação, em dólar. Isso é um problema de segurança alimentar?
MALUF: Estamos assistindo ao encarecimento relativo dos alimentos, fruto de fatores internacionais e também domésticos. Uma das razões para tanto é a desregulamentação dos mercados construída nos anos 90 no Brasil e no mundo. Portanto, é evidente que temos de recuperar a capacidade regulatória do Estado em vários campos.
O Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo. Isso é um risco?
MALUF: Recente estudo da Anvisa e da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) demonstra isso claramente. É preciso desestimular o uso de agrotóxico e iniciar uma transição na direção da produção orgânica e, preferencialmente, agroecológica.
Como o senhor avalia o risco de intoxicação por agrotóxico?
MALUF: É grande, desde logo, para os trabalhadores agrícolas que os manipulam. E para a população que tem consumido comida com veneno.
O Brasil é o segundo maior plantador de sementes geneticamente modificadas do mundo e tende a ser o maior pagador de royalties por causa disso. Como o senhor avalia essa situação?
MALUF: Danosa para o país e seus agricultores familiares. Há um engodo por razões comerciais travestido de argumentação científica duvidosa.
FONTE: O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário