Talvez não seja assim tão abstruso em razão da História que temos, mas o fato é que o Brasil, nos dias que correm, se transformou num imenso tribunal. A terra de bacharéis - qualificação pejorativa de que parecíamos ter-nos livrado com nossos ciclos impetuosos de modernização - parece ter ganho vida nova, a se crer pelos rios de tinta derramados diariamente em nossa imprensa, com os comentaristas especializados nas artes da processualística e nas manhas das contendas judiciais já rivalizando em importância com o colunismo dedicado ao futebol. Jornalistas, alguns deles notoriamente jejunos no tema, brindam-nos pelas redes midiáticas com opiniões sobre o justo, sobre a validade das provas em matéria penal e até, os mais temerários, sobre papel a ser exercido pelo clamor popular em julgamentos de grande repercussão.
Com a política recalcada por uma cooptação sem freios dos movimentos sociais exercida pelo Estado e seus múltiplos aparelhos, e com o rebaixamento generalizado dos partidos políticos ao papel de despachantes de interesses privados, o Judiciário passou a ser conhecido pela sociedade como a alegoria da República que lhe falta, como presentemente nessa Ação Penal n.º 470, conhecida como o processo do mensalão, ora em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas alegorias são figuras de linguagem que se prestam a revelar o que se oculta por detrás das aparências imediatas, como a da caverna de Platão, mobilizada pelo filósofo para demonstrar que os homens prisioneiros da caverna, na imagem que criou, somente podiam ver as sombras da realidade, e não ela própria.
No caso do processo do mensalão, a sensação de que o Judiciário tomou para si o lugar da política é também filha de uma ilusão de perspectiva. O que está em julgamento são atos denunciados como ilícitos penais por quem detém a capacidade legítima para tal, o Ministério Público, uma instituição republicana, e as razões, no caso em tela, para a atribuição de culpas e penas ou de eventuais absolvições por parte dos juízes devem se circunscrever aos cânones legais e à tradição hermenêutica do nosso repertório jurídico, especialmente em matéria penal. Quem colocou o jabuti nos galhos do STF, porque ele não sobe em árvore, foram as novas instituições de nossa democracia, cunhadas pela Carta de 1988.
Mais que tudo, têm sido elas que vêm garantindo, ao menos até aqui, um transcurso ordenado para o andamento do processo, em que pese o fato de alguns réus serem lideranças influentes do partido hegemônico na coalizão governamental. Nesse sentido, não cabe travestir o STF do papel salvífico de herói institucional. O que cabe, e se espera dele, é que se ponha à altura da grave circunstância à sua frente e, no estrito cumprimento do seu mandato constitucional, ofereça à sociedade um julgamento sereno e justo, que deixe definitivamente para trás essa história mal-assombrada que vem toldando a percepção do efetivo estado de coisas da Nação, que não param de mudar.
Desanuviada do ambiente essa carga sombria, descerra-se um cenário novo com seus desafios, alguns deles prementes. A crise sistêmica do capitalismo como sistema mundial ronda as nossas portas em meio da segunda metade do governo Dilma, que procura responder a ela com um arsenal de medidas exóticas à tradicional orientação, em matéria econômica, do partido ao qual pertence, espinha dorsal da sua base de sustentação. A controvérsia semântica sobre a diferença entre política de concessões e de privatização não passa de uma chinesice que não engana o empresariado, que acorreu em revoada ao Palácio do Planalto para bater o martelo em grandes negócios. O Estado, até há pouco considerado como o demiurgo do que deveria ser nosso salto à frente, sai em surdina, porque a alavancagem para o crescimento econômico, por decisão presidencial, deve migrar para o setor privado, e não faltam aqueles que, em tom de falsete, rotulam a guinada de "choque de capitalismo".
O cenário ainda mais se complica com a movimentação massiva do sindicalismo dos funcionários públicos, um esteio seguro dos governos de Lula, e com a dissidência que se instala no sindicalismo em geral sobre a reforma da legislação trabalhista, simpática às hostes petistas e rechaçada pelas outras centrais sindicais. De outra parte, o processo eleitoral nas sucessões municipais, ora em curso, tem atuado no sentido de afetar a coalizão governamental, casos fortes o posicionamento do PSB no Recife e em Belo Horizonte, nesta última capital em aliança com o PSDB, acérrimo adversário do PT, a esta altura com seu candidato Aécio Neves já em trabalhos para disputar a Presidência da República.
Decerto ser improvável que Dilma, no enfrentamento com o sindicalismo do setor público, se deixe tentar pelo estilo draconiano de uma Margaret Thatcher e venha a enfrentá-lo com mão de ferro. Mas é igualmente improvável, diante da dura contingência a que está exposta, com a economia desencontrada do caminho para crescer, que reedite a política do seu antecessor, concedendo os aumentos na escala pleiteada a fim de devolvê-lo ao redil, missão tão difícil quanto a de devolver ao tubo a pasta de dente que se extraiu dela.
Não se pode acusar Dilma de infidelidade a seu mentor, ela é piloto de mar ignoto, a carta de navegação que serviu a Lula perdeu seus préstimos. E ela era datada, pouco venturosa, uma colagem de referências de tempos vividos na modernização de Vargas, na de JK e no regime militar de Geisel, deixadas para trás as que o serviram quando iniciou sua feliz trajetória. Para o bem ou para o mal, logo que chegue ao fim o processo do mensalão, essa também será a hora da plenitude da sua investidura presidencial.
Luiz Werneck Vianna, sociólogo, professor-pesquisador da PUC-Rio.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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