sábado, 18 de agosto de 2012

Habermas clássico sai no Brasil - Luiz Repa

"Teoria do Agir Comunicativo" relê a obra de Lukács e Adorno e ataca as limitações da Escola de Frankfurt

Se um leitor pouco disposto a escalar as duas montanhas, isto é, os dois volumes da Teoria do Agir Comunicativo, indagasse sobre um atalho para chegar ao âmago da obra, a melhor proposta seria saltar de pára-quedas sobre os topos, ou seja, começar a leitura por seus capítulos finais.

Os capítulos que encerram os dois tomos – “De Lukács a Adorno – Racionalização como Reificação” e “Consideração final – De Parsons a Marx através de Weber” – apresentam o essencial do projeto: reconstruir a Teoria Crítica e atualizar o diagnóstico de época, a análise das sociedades capitalistas modernas mais avançadas.

O impacto da obra não poderia ter sido maior quando lançada em 1981. Jürgen Habermas, o ex-assistente de Theodor W. Adorno no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, o centro institucional da Teoria Crítica desde os anos 1930, erguia uma crítica severa a seus antecessores – principalmente Adorno e Max Horkheimer – a fim de mostrar que a Teoria Crítica se encaminhara para um beco sem saída e que o diagnóstico de época proposto por eles perdera seu prazo de validade.

Vale lembrar que o diagnóstico de Adorno e Horkheimer, cristalizado na expressão “mundo administrado”, já havia significado uma considerável divergência em relação ao de Marx. Para eles, as tendências que, de acordo com Marx, levariam a uma sociedade emancipada não se comprovaram. Eles deixam de projetar uma crise sistêmica do capitalismo, dadas as possibilidades de intervenção e administração estatal sobre a economia.

Tampouco consideram plausível a intensificação da luta de classes entre proletariado e burguesia, uma vez que são visíveis não a pauperização e a homogeneização da classe trabalhadora, mas antes a diferenciação social interna nessa mesma classe e uma melhora notável no padrão de vida de grande parte da população.

Além disso, contrariando o teorema de Marx, o desenvolvimento das forças produtivas, da técnica e da ciência foi colossal desde os meados do século XIX, mas não acarretou conflitos estruturais com as relações de produção. Em vez disso, a ciência e a técnica se tornaram instrumentos privilegiados de dominação. Por fim, toda consciência crítica se vê acuada diante da fabricação consciente de ideologias, a qual Adorno identificou com o conceito de “indústria cultural”.

Não por acaso, tal diagnóstico se dá nos termos de uma crítica da razão, assim como em Habermas. A explicação disso se encontra em Max Weber e em Georg Lukács: a modernização capitalista pode ser vista, segundo esses autores, como um processo de racionalização crescente, isto é, um processo pelo qual a sociedade se estrutura e se reproduz segundo critérios tidos por racionais. É por isso que a crítica filosófica da razão coincide com uma crítica social da realidade moderna.

É nesse contexto que surge o conceito-chave de razão instrumental, a qual teria se imposto no processo de modernização, na racionalização e no esclarecimento científico do mundo, cujas origens remontam, porém, às relações mitológicas do homem com a natureza. Seguindo esse padrão de racionalidade, só é possível decidir racionalmente sobre os melhores meios para alcançar determinados fins; sobre os próprios fins não há fundamentação racional. Enfim, o mundo administrado seria o contexto de ofuscamento em que predomina a racionalidade instrumental e reificadora.

Para Habermas, no entanto, a crítica da razão instrumental só ganha sentido pleno se acompanhada de uma ampliação do conceito de racionalidade. Só é possível criticar o predomínio da racionalidade instrumental se o critério da crítica é um conceito de razão que vai além da relação meios e fins.

Para tanto, ele desenvolve, recorrendo a diversos autores da filosofia da linguagem, o conceito de racionalidade comunicativa. A relevância prática e social desse conceito é atestada, por sua vez, por uma teoria do agir (ou da ação, para usar um vocabulário mais técnico) comunicativo. Nesse tipo de ação social, a linguagem como tal implica uma lógica intersubjetiva em que os agentes têm de se relacionar entre si como sujeitos ao mesmo tempo iguais e diferentes.

Uma vez que ninguém pode disponibilizar a linguagem a bel-prazer, a ação comunicativa não seria de modo algum episódica. Aos olhos de Habermas, toda vez que realizamos um ato de fala, ou seja, fazemos um proferimento para um outro, não podemos escapar à lógica intersubjetiva segundo à qual reivindicamos necessariamente, da perspectiva do outro, uma pretensão de validade para o que proferimos. Isso se aplica às manifestações mais banais, como simples constatações, até os enunciados mais complexos.

Assim, erguemos com nossos atos de fala cotidianos pretensões de validade como verdade, correção normativa e veracidade. Nossos atos de fala podem ser aceitos ou rejeitados no que concerne à referência verdadeira aos estados de coisa descritos, à relação correta com o conjunto de normas pressupostas na interação ou, simplesmente, à relação veraz dos agentes com seus respectivos mundos subjetivos.

O reconhecimento da validade do que é dito é importante para o prosseguimento da interação. Ele significa um acordo, geralmente implícito, que orienta a ação de cada um dos agentes envolvidos. No entanto, esse acordo só poderia motivar cada um a agir em confiança mútua porque cada um dá implicitamente a garantia recíproca de que há razões para a validade que foi associada ao ato de fala.

Assim, no caso de contestações ou dúvidas, os agentes passam a argumentar para sustentar ou rejeitar a validade do que foi dito.

Segundo Habermas, na prática comunicativa cotidiana, as argumentações – ou, no seu vocabulário, os discursos – são raras, porém explicitam todas as dimensões de racionalidade inscritas na ação comunicativa. Essas dimensões se referem a todos os procedimentos que devem possibilitar um consenso entre os participantes, tais como máxima liberdade de expressão, máxima igualdade de direitos e inclusão de todos os possíveis concernidos.

Se esses procedimentos não são reciprocamente pressupostos pelos participantes, eles próprios não consideram que participam de uma discussão efetiva. A racionalidade e – o mais importante para a Teoria Crítica – os potenciais de emancipação não se encontram nos consensos alcançados, os quais são sempre falíveis, mas nos procedimentos da discussão livre e igualitária.

Por isso é também um equívoco tomar Habermas como um filósofo do consenso, já que estão em jogo para ele as possibilidades libertadoras da discussão.

Segundo Habermas, esse potencial de emancipação não pode ser subestimado, visto que nenhuma socialização é possível sem recurso à linguagem (e nenhuma linguagem natural pode ser privada de seu uso comunicativo), que nenhuma tradição cultural independe da linguagem, que nenhuma norma pode se impor somente à força, mas depende também de consensos considerados legítimos.

No caso das sociedades modernas, a ação comunicativa se torna ainda mais estrutural, já que não existe nelas um saber capaz de predeterminar todas as esferas da vida, como era o caso das visões míticas e religiosas do mundo nas sociedades tradicionais.

Isso significa que o processo de racionalização não representou apenas o desenvolvimento da ciência e da técnica, como enfatizaram Adorno e Horkheimer, mas também uma dependência cada vez maior de todos os contextos de interação social em relação a procedimentos argumentativos.

Analisado dessa forma, o processo de racionalização implica também a dependência da legitimação do poder em relação aos procedimentos democráticos, o que significa dizer que o capitalismo tem de lidar sempre com a democracia de massa. E esta, por sua vez, com uma esfera pública que remete, em princípio, ao potencial de discussões cada vez mais abertas e livres.

Com isso, Habermas pode absorver o conteúdo de verdade do diagnóstico de Adorno e Horkheimer, sem concordar com o esgotamento dos potenciais emancipatórios.

Ele concorda com os seus antecessores sobre a caducidade das perspectivas revolucionárias de Marx, mas não conclui daí que a emancipação tenha desaparecido do horizonte. O lamento pela revolução perdida cede lugar à atenção pelas ambivalências modernas e pelas conquistas democráticas.

Trata-se de pensar em formas de vida emancipadas no plural, ligadas a movimentos sociais com demandas que não se vinculam mais – ou pelo menos não diretamente – à transformação das relações de trabalho. As formas de vida emancipadas têm de ser analisadas no contexto de um novo conflito, que está no centro do diagnóstico habermasiano: o embate entre o mundo da vida e o sistema.

Nesse diagnóstico, as patologias e os conflitos modernos podem ser reportados na maior parte a uma tendência de colonização sistêmica do mundo da vida.

Isso quer dizer que os sistemas dinheiro e poder (economia capitalista e burocracia estatal) se autonomizam em relação aos contextos de interação comunicativa e passam a penetrar os âmbitos do mundo da vida (a esfera privada da família e das amizades e a esfera pública), cuja reprodução depende do uso comunicativo da linguagem.

Como os sistemas dinheiro e poder se reproduzem por meio de ações estratégicas e instrumentais, a monetarização e a burocratização das relações sociais que eles acarretam levam inevitavelmente a distúrbios e reações de resistência do mundo da vida. Levam em geral a formas distorcidas de comunicação, de maneira que os participantes sofrem uma coerção sistemática para considerar os outros e a si mesmos como objetos manipuláveis.

Por outro lado, os novos movimentos sociais (o feminista, o estudantil, o ecológico etc.) representam reações do mundo da vida à invasão sistêmica, lutando por formas autônomas de convívio social. Dessa maneira, a teoria da ação comunicativa tem de ser lida como uma teoria sobre um novo tipo de conflito estrutural, relativamente desligado das classes sociais e atravessando a sociedade por inteiro.

As três décadas que nos separam da aparição da Teoria do Agir Comunicativo permitem uma visão mais clara tanto de sua fecundidade quanto de seus limites históricos.

De um lado, a teoria da ação comunicativa estimulou teóricas feministas, como Seyla Benhabib, Nancy Fraser e Iris Young, a repensar os conflitos em que se envolvem os movimentos sociais. Além disso, como demonstra a obra de Andrew Arato e Jean Cohen, ela serviu de base para o desenvolvimento de um conceito de sociedade civil que se diferencia tanto do mercado como do Estado. Também possibilitou novos impulsos para um modelo de democracia deliberativa que serviria de alternativa às ideias de democracia representativa e participativa.

Por outro lado, a crise do Estado de Bem-Estar Social, já observada em 1981, intensificou-se a tal ponto que dificilmente se pode tirar da ordem do dia a premência das questões materiais e distributivas. Soma-se a isso a diminuição do espaço de ação política que os Estados nacionais sofrem por conta da globalização econômica. Conflitos pouco analisados na obra de 1981, como os ligados ao fundamentalismo religioso, aparecem de maneira significativa mesmo em sociedades supostamente racionalizadas.

A obra posterior de Habermas aborda todos esses problemas, o que demonstra sua disposição incomum de atualização contínua.

Luiz Repa é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná.

Teoria do Agir Comunicativo
Jürgen Habermas
Trad.: Paulo Astor Soethe e Flávio Beno Siebeneichler
WMF Martins Fontes
730 págs. (vol. 1), 824 págs. (vol. 2)
R$ 135 (caixa)

FONTE: REVISTA CULT , N º 171

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