A presidente da República denuncia uma tenaz campanha para vilipendiar a política. Se a chefe de Estado acredita no que diz, temos o dever imperioso de captar a semântica de seus vocábulos.
Em primeiro lugar, precisamos ir às fontes da língua portuguesa, nossa forma de expressão e pensamento. Vilipêndio vem do baixo latim vilipendere, uma corrupção (e não é aqui a primeira vez que a fala e a vida, de Roma a Brasília, se corrompem) do termo clássico vili (de preço muito baixo). O custo e a estimação das coisas em nossa cultura, antes de Roma, vêm dos gregos. Povo achegado às disputas jurídicas, sobretudo quando se trata da riqueza familiar e do governo (democrático...), os atenienses faziam uma clara distinção entre os objetos mais duradouros e os menos.
Na lei ática surge a diferença, até hoje percebida no Direito, entre coisas móveis e imóveis. A garantia de propriedade das segundas era mais importante do que a exigida para as primeiras. A indisponibilidade que marcava os imóveis não se estendia ao móveis, caso contrário, a vida econômica teria sido paralisada. Mas o legislador ateniense considerava os móveis como vilis possessio relativamente aos imóveis. É sob tal ideia que a lei ateniense obrigava o tutor a vender toda a fortuna mobiliária do menor para aplicar em imóveis (Saglio e Daremberg). Os móveis aproximam-se do que Platão chamakapeleia, o comércio de coisas pequenas, de pouca valia e duração. Já na Atenas clássica as tentações de consumo levam ao desejo sem limites dos compradores.
Um poder político que se apoia em trocas de insignificâncias só pode ser instável. Daí, Platão o bane em A República e As Leis. Se o produto perde valor quando dele o cliente se apossa, ele não pode ser a base de um Estado saudável. Ocorre na kapeleia o vilipêndio da política. Não por acaso, Aristófanes, crítico da democracia ateniense, lembra que o demagogo, servidor de ilusões ao povo, oferece linguiça barata em troca do poder. O povo, diz Aristófanes no introito da peça Os Cavaleiros, é reclamão e surdo como uma porta. Um apolítica comercial daquele modo envilece o Estado. Mesmo ataque o teatrólogo repete em As Vespas. Para conseguir um dinheirinho a mais do Estado, cidadãos preguiçosos brigam por um lugar nos julgamentos em que causas pequenas são decididas. Para que o emprego renda é preciso que as delações sejam numerosas. Elas são como picadas doloridas que geram discórdia política. Daí o nome dos juízes de pequenas causas: "vespas".
Quando se instala o império ateniense, um povo inteiro se dedica ao consumo e ao bem estar, fruto do parasitismo ático sobre as colônias.Amassa popular vende apoio político a preço vil. A ruína de Atenas está marcada, portanto, como sabe quem leu Tucídides. Temos o vilipêndio da política democrática.
Deixemos a inspeção do passado (mais presente do que nunca na política brasileira) e vejamos o que agora pode ser dito "vilipêndio". Políticos de grandes ou pequenos partidos compram apoios em troca de obras públicas para as regiões. É comercializar um bem perene, o Estado federal, por coisas efêmeras. Basta ver as "obras" que geram eleições caríssimas: em anos elas se degradam, transformam-se em ruínas se edifícios, em crateras se estradas, placas que anunciam o nada. Vilipêndio da política.
Vejamos o elo entre políticos (nos três Poderes do Estado) e a imprensa. Muitos profissionais trocam informações com lideranças do Legislativo, do Executivo, do Judiciário. Qual o preço pago se quisermos saber se tratamos com resvilis os assuntos importantes? Muitas matérias aproveitam "vazamentos" de autoridades (em especial contra os inimigos dos poderosos) e da polícia, sem demasiadas preocupações com a pesquisa rigorosa dos fatos. Em última instância, qui prodest (a quem aproveita)? Examinadas várias "denúncias", chega-se com rapidez aos gabinetes palacianos dos três Poderes (onde trabalham os assessores cujo título mais apropriado seria "spin doctors", os famosos artífices de maledicências). Qual é o núcleo do mercado negro onde são vendidos e trocados apoios políticos, cargos, verbas, obras? Tal feira, por excelência, está situada no Congresso Nacional. Ali se pratica, no alto e no baixo clero parlamentar, a kapeleia, o rebaixamento do mandato ao preço ínfimo, ou elevadíssimo, conforme a matéria.
Vilipêndio da política, quando integrantes do partido governista compram parlamentares (não raro a preço vil) para que votem em favor da Presidência e de seus ministérios. Tal vilipêndio custou ao País um processo rumoroso cujo resultado foi a condenação, pela maia alta Corte de Justiça, de lideranças como integrantes de quadrilha. Por mais caros que fossem os "empréstimos" de Marcos Valério aos nossos bolsos de lesados contribuintes do fisco, eles significaram um sacrilégio a custo vil, se pensarmos na legitimidade do voto parlamentar. Foram vendidas e trocadas a preço irrisório a fé pública e a confiança dos eleitores. Na bacia das almas a essência do regime democrático foi posta numa obscena banca de negócios. Tal é o vilipêndio da política.
Quando oligarcas que passaram o regime ditatorial dominando seus Estados e pares do Congresso, sob o artifício de monstruosidades como o Centrão, são ditos "homens incomuns" por quem deveria zelar pela igualdade, temos o vilipêndio da política. Quando, para atender aos interesses dos mesmos oligarcas, a Justiça censura os jornais e a mídia em geral, temos o vilipêndio da política.
Enfim, a presidente usou a palavra certa, mas errou o alvo. No Congresso, para nossa vergonha e tristeza, impera ainda hoje o "é dando que se recebe". De semelhante vilipêndio a Presidência da República e seus ministérios, infelizmente, ainda são parte.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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