Doralice é presidente de um país fantasia onde tudo parece perfeito a seus olhos e aos de seus súditos mais próximos. Nesse país, economia e política se fundem e se confundem. Tanto que alguns economistas omitem a conjunção e tratam a fusão como economia política - a arte de entender a economia no âmbito dos processos políticos. Tudo parece dar certo nesse país. Todos estão empregados. Quem não está trabalhando recebe uma bolsa do governo para o sustento de sua família - o Bolsa Família, a menina dos olhos de Doralice. Sem desempregados, consumo em expansão e milhares de famílias pobres cobertas, pelo programa de transferência de renda, a popularidade do governo está nas nuvens. Nunca antes nesse país a aprovação do governo e de sua presidente foi tão alta. No próximo ano haverá eleições e, se tudo continuar como está, a oposição será derrotada mais uma vez.
Graças à política econômica da última década, foi incorporado ao mercado de consumo um volume de pessoas comparável àpopulação francesa. Mas o crescimento da economia anda muito baixo. Seu assessor econômico lhe aconselha: "É preciso estimular ainda mais a demanda". Gomo fazer? "Retire impostos de bens duráveis, aumente o crédito nos bancos públicos, dê subsídios à produção de automóveis", manda a presidente. Não se pode descui-d ar, é preciso manter o nível de emprego e de consumo, pois a oposição está de olho. Não se pode esquecer que haverá eleições no ano que vem. Seu assessor econômico lhe diz, ainda, que a culpa do baixo crescimento é do câmbio. Mas, se o real for desvalorizado para estimular a indústria, a classe C não poderá mais sonhar com as férias na Disney se a moeda for valorizada para evitar impacto sobre a inflação, os exportadores gritam. O câmbio é um pesadelo para a presidente. Gomo fazer, se haverá eleições no ano que vem?
Ah, mas e a inflação? Os preços estão subindo. Ora é culpa do tomate, ora do feijão. Um de seus assessores lhe diz a inflação de base neste país gira em torno de 5% a 6%, não se preocupe". Doralice manda pôr álcool na gasolina e congelar seu preço, segurar as passagens de ônibus, tirar impostos da cesta básica. Aumentar juros, jamais, pois haverá eleições no ano que vem.
"Cuida-te, Doralice. Não confie demais no que dizem os que estão muito peito de você", alerta seu conselheiro-mor, um pragmático ex-presidente que conhece como ninguém a alma do povo e os meandros do poder. Enfim, é ele quem a orienta nas veredas da política. E haverá eleições no ano que vem.
Num belo rim de semana, ela estava em visita a um país amigo bem distante do seu quando recebeu ligação de seu Palácio, informando que o Bolsa Família sofreu um ataque terrorista, partido de seus inimigos. Divulgo ram que o programa acabaria e uma multidão de beneficiários coitcu para remar sacar o que podia, Pânico, caixas eletrônicos quebrados e grande tumulto naquele sábado de horror, principalmente nas regiões mais carentes do pais. Um diretor da Caixa, banco responsável pelos pagamentos, se apressou, a explicar que foi espalhado um falso boato e que ele havia mandado liberar os recursos para acabar com a crise. Eis o herói do dia! Assessores próximos da presidente imputaram a responsabilidade pelo ato à oposição, pois haverá eleições no ano que vem. Ela, ainda em viagem, classificou o fato de desumano e criminoso. No seu regresso, a policia foi chamada para investigar o crime.
Qual o quê. Dias depois, o presidente da Caixa, com aparente desconforto, reconheceu os erros e disse que, em razão da duplicidade no cadastro de mais de 900 mil beneficiários, determinou a antecipação dos pagamentos e o depósito dos recursos nas respectivas contas. Naquela sexta-feira todos já poderiam sacar seus benefícios, tato que antecedeu o boato. Pediu desculpas. O telefone do Palácio toca. E o canselheiro-mor chamando, preocupado com o rumo da economia, pois haverá eleições no ano que vem: ""Doralice, agora você tem de me dizer como é que nós vamos fazer",
Professor da Fundação Dom Cabral, foi ministro do Trabalho e do Planejamento e Orçamento no governo FHC
Fonte: O Estado de S. Paulo
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