domingo, 18 de agosto de 2013

Uma vida exemplar - Flávio Tavares

O exemplo guia o mundo. Nas excentricidades atuais, em que o falso se sobrepõe ao autêntico, talvez nem se saiba o que seja uma vida exemplar. Mas, quando a morte leva, agora, o brigadeiro Ruy Moreira Lima para longe de nós, é impossível calar sobre a integridade de quem foi espelho e paradigma ético nestes tempos de grosserias e mentiras.

Alfabetizei-me decifrando as notícias da II Guerra Mundial e aí conheci meus primeiros heróis. Um deles, o tenente-aviador Ruy Moreira Lima, em 1941-42 buscou pelo Atlântico os submarinos alemães e italianos que torpedearam 33 navios brasileiros e mataram mais de mil pessoas. Afundou um deles e interceptou o abastecimento de outros. Em 1944-45, combateu na Itália, integrando o "Senta a Pua", o Grupo de Aviação de Caça da FAB.

Os Tunderbolt norte-americanos que os brasileiros pilotavam (inferiores aos Stuka nazistas) tinham de atacar a baixa altura, expondo-se ao inimigo. Mesmo assim, o piloto de 25 anos realizou 92 missões de bombardeio.

Não é só o destemor ou coragem que define os heróis, porém. Também os nazistas tiveram combatentes destemidos, mas arrasar cidades e matar civis indefesos não é exemplo de vida. A atividade militar existe para garantir a paz, guerrear é apenas um instrumento. O fuzil é como o bisturi – deve cortar só o tumor. O amor à humanidade é que define o herói.

De volta ao Brasil, Ruy participou da campanha "o petróleo é nosso", defendendo os mesmos princípios de independência e soberania política dos tempos da guerra. Galgou todos os escalões e, em 1964, já coronel, comandava a Base Aérea de Santa Cruz, a maior do país, no Rio de Janeiro. Na rebelião golpista do general Mourão, fez um voo rasante, num jatinho desarmado, em plena tempestade, sobre as tropas que iam de Minas ao Rio.

– Caminhões e tanques pararam na estrada. A tropa inteira debandou e entrou no mato, em fuga! – contou num depoimento gravado para o filme-documentário O Dia que Durou 21 Anos.

Logo, sugeriu bombardear a estrada, "só a estrada", adiante das tropas da vanguarda e atrás da retaguarda, sem atingir os soldados. Fizera isto na guerra, várias vezes, cortando sempre o avanço nazista, a tal ponto, que o então capitão Humberto Castelo Branco o apelidou de "olho de lince" pela precisão das suas bombas.

Mas, em 1964, o presidente da República não permitiu que o ministro da Aeronáutica o autorizasse bombardear a estrada, só a estrada. E os golpistas saíram do mato, retomaram o caminho e empalmaram o poder.

De imediato, Ruy foi substituído no comando da maior base aérea do país, preso e excluído das Forças Armadas. A excrescência do Ato Institucional punia o grande herói da aviação militar sob o aplauso do marechal Castelo Branco, que (na guerra) o apelidara de "olho de lince".

Foi várias vezes preso na ditadura e seu registro de piloto, cassado. As condecorações por "atos de bravura" dos governos da Inglaterra, EUA, França, Polônia e do Brasil, não lhe valiam para sobreviver e o "ás" de 92 combates, culto e estudioso, virou vendedor de alimentos, porta em porta. Ruy e eu nascemos no mesmo dia de junho, ele 15 anos antes de mim, mas o que admirei nele não foram os relatos da guerra e, sim, a retidão e o humanismo. Nunca se lastimou. Sem atacar os que o perseguiram, lutou por seus direitos e a Justiça mandou promovê-lo a major-brigadeiro, maior posto da hierarquia militar.

A própria Aeronáutica o homenageou várias vezes nos últimos anos e também agora, na morte, num exemplo do espírito novo que sepulta o rancor e ódio da ditadura.

Fonte: Zero Hora

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