Alta pressão: Categorias organizadas tomaram o Congresso. Foram apresentadas à Assembleia Constituinte mais de 61 mil emendas
Chico Otavio
Os berrantes da União Democrática Ruralista (UDR) representaram o auge da guerra verbal que sacudiu Brasília durante 20 meses. Eles fizeram parte da trilha sonora que embalou a votação do direito à propriedade na Constituinte. Em quatro sessões e sete votações nominais, nunca se viu um conflito tão acirrado entre proprietários e trabalhadores rurais. Mas não foi o único. Entre 1º de fevereiro de 1987 e 5 de outubro de 1988, Brasília foi a arena de um embate inédito que mobilizou, além de ruralistas e camponeses, praticamente todas as forças da sociedade que conseguiram levar o seu apelo à capital do país, disputando uma fatia da Constituição que se construía no calor dos bate-bocas e dos lobbies.
Trabalhadores, empresários, magistrados, religiosos, índios, mulheres, militares, homossexuais, estudantes e tantos outros. Todo mundo gastou as cordas vocais nas galerias do Congresso, que registravam um movimento diário de dez mil pessoas. Na sessão que promulgou a Constituição, o discurso de Ulysses Guimarães contabilizou essa mobilização histórica, ao destacar as 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, que foram distribuídas, relatadas e votadas no longo trajeto das subcomissões temáticas à redação final.
Ex-assessor parlamentar que viveu as emoções da Constituinte, Adriano Pilatti, hoje professor de Direito Constitucional da PUC-Rio, viu brotarem desta guerra verbal "os conflitos de interesse e opinião que haviam permanecido latentes, irresolutos ou agravados durante os anos de repressão". Para ele, foi inevitável que o texto final expressasse a intensa mobilização, marcada por votações polarizadas e por um grande esforço na busca de acordos entre lideranças em choque. E Pilatti gostou do resultado:
- As sociedades são, por essência, conflitivas. No Constitucionalismo, a grande riqueza e o problema é encontrar um modo juste e igualitário de compatibilizar esses direitos. Se pensarmos que, no Império, apenas 1% da sociedade tinha direito à participação política e, hoje, esse total ultrapassa os 70%, houve uma evolução.
Sem um anteprojeto que orientasse o debate, já que o então presidente José Sarney rejeitou a proposta feita por um grupo de notáveis, a Comissão Arinos, a Constituinte partiu do zero.
"Espetáculo antropológico"
A construção do futuro texto foi dividida em oito comissões temáticas, cada qual com três subcomissões. num total de 24 frentes de trabalho que "não se comunicavam entre si", avalia hoje o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), apontado como uma das maiores autoridades em Direito Constitucional do país:
- Se o texto que emergiu das comissões já estava desarrumado, com mais de 1 mil artigos, ficou ainda mais desarrumado com a atuação dos grupos de pressão. Não havia nenhum tipo de interesse que não estivesse lá. Os corredores da Constituinte eram um espetáculo antropológico. E a consequência deste complexo processo de elaboração foi uma Constituição que alternou pontos alto e baixos e é indiscutivelmente prolixa, casuística e corporativa.
Na Constituinte, os extremos se encararam. O deputado Roberto Freire (PPS-SP), então no PCB, comprou algumas brigas, entre as quais a tentativa de revogar o ensino religioso das escolas públicas. Foi derrotado pela bancada da fé, que também não conseguiu comemorar uma vitória total: a religião permaneceu, mas não obrigatória.
- Historicamente, as Constituintes brasileiras sempre começaram com um anteprojeto. Como essa foi diferente, iniciada praticamente nas comissões temáticas, ela abriu caminho para uma mobilização nunca antes vista na História do país - sustenta Freire.
Vinte e cinco anos depois da votação do direito à propriedade, o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), ex-líder da UDR, afirma que a reação dos fazendeiros teria sido violenta, provocando uma "guerra de secessão", se a entidade não tivesse vencido a queda de braço contra as forças progressistas, barrando a possibilidade de desapropriação de terras produtivas.
Se os proprietários partiriam mesmo para um ato radical, jamais se saberá. O debate sobre os excessos dos ruralistas continua aberto. A única certeza, segundo o professor Adriano Pilatti, é que, apesar das polêmicas, a Constituição Cidadã já é a mais longeva em tempos de democracia.
Fonte: O Globo
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