quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Luiz Carlos Azedo: A um passo do terror

A outra face da moeda é o endurecimento das leis e o cerceamento das liberdades individuais

Atribui-se ao ex-deputado Vladimir Palmeira, então o principal líder estudantil carioca, a palavra de ordem que incendiou corações e mentes nas manifestações de 1968: “Mataram um estudante, podia ser seu um filho”. Edson Luís de Lima Souto era um secundarista paraense, filho de lavadeira, assassinado em 28 de março daquele ano. Cursava o supletivo e sonhava com uma faculdade de engenharia. Era frequentador do Calabouço, como era chamado o Restaurante Central dos Estudantes, localizado onde é hoje o trevo de acesso ao Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Criado por Getúlio Vargas, fornecia refeições baratas para estudantes pobres.

Foco de agitação estudantil, o Calabouço ficava ao lado do Instituto Cooperativo de Ensino, onde o mártir das manifestações de 1968 estudava. O término das reformas do restaurante e a melhor qualidade da comida eram bandeiras dos protestos. Os estudantes organizavam uma passeata quando a Polícia Militar chegou ao local e dispersou os jovens, que se refugiaram no restaurante. Policiais invadiram o local e o comandante da tropa da PM, Aloísio Raposo, matou Edson com um tiro à queima-roupa. Outro estudante, Benedito Frazão Dutra, ferido gravemente, morreu no hospital. Os estudantes não permitiram, porém, que o corpo de Edson Luís fosse levado para o Instituto Médico Legal (IML); foram com ele em passeata para a Assembleia Legislativa, onde foi velado. Dali, saiu para o enterro no Cemitério São João Batista, com 50 mil pessoas protestando. Edson Luís foi enterrado ao som do Hino Nacional, cantado pela multidão. O Rio de Janeiro parou.

O desdobramento do episódio foi a Passeata dos Cem Mil, em 26 de julho, que revelou profunda divisão entre os oposicionistas. Parcela considerável dos estudantes cantava a palavra de ordem “só o povo armado derruba a ditadura”, enquanto os mais moderados respondiam com “o povo unido jamais será vencido” e “o povo organizado derruba a ditadura”. Por trás da retórica, havia o “racha” do Partido Comunista Brasileiro, liderado por Carlos Marighella e outros líderes dissidentes, que defendiam a luta armada contra o regime militar. O resto da história é conhecida: a maioria dos líderes dos protestos aderiu à guerrilha urbana e rural; muitos foram presos, torturados, exilados ou simplesmente executados.

Vítima
O funeral do cinegrafista da TV Bandeirantes Santiago Andrade, 49 anos, não terá, provavelmente, a mesma dimensão do enterro de Edson Luís. Apesar da consternação que o caso provocou na sociedade, os protestos serão sobretudo dos colegas de profissão. Poderia ser o pai de um dos manifestantes que participaram dos protestos contra aumentos de passagens, na Central do Brasil, há uma semana, ocasião em que foi atingido na cabeça por um rojão disparado por um manifestante. Atualmente, jornalistas não são bem-vindos nas manifestações, são hostilizados por policiais e por manifestantes porque registram os excessos de cada um, ou seja, revelam a irracionalidade e a violência que vêm dominando os atos de rua nas principais cidades brasileiras.

Nas rede sociais, a “mídia comercial”, como é chamada até em reuniões de sindicatos de jornalistas profissionais, virou uma espécie de Geni para os militantes de esquerda, de todas as idades. Quem ousa questionar os métodos violentos adotados pelos militantes black blocs e outros arruaceiros é virulentamente atacado. Defende-se a legitimidade da violência nos protestos como uma espécie de autodefesa dos manifestantes, embora o vandalismo tenha virado um fim em si mesmo. Velhos teóricos de ultraesquerda, como Antônio Negri, ideólogo das Brigadas Vermelhas, voltam a ser lembrados nas reuniões e debates.

Curioso é que o governo é quase omisso em relação à atuação desses grupos violentos, mantendo distância regulamentar das manifestações. O desgaste da repressão fica para os governadores, com polícias despreparadas para lidar com o fenômeno. A repressão reforça o discurso de que a reação violenta é uma respostas legítima dos manifestantes, numa espiral crescente. Glamouriza-se a violência, da mesma forma como se faz a apologia da luta armada contra o regime militar, que foi um equívoco político crasso.

O jurista italiano Norberto Bobbio, em artigos para os jornais La Stampa e Avanti, travou um memorável debate com a esquerda do país europeu sobre a violência política e as raízes do assassinato do primeiro-ministro democrata-cristão Aldo Moro, pelas Brigadas Vermelhas, que adotaram a luta armada em plena democracia italiana, em maio de 1978. Criticava os grupos revolucionários que justificavam a própria violência como uma resposta possível à violência do Estado.

Essa é a lógica perversa que leva ao terrorismo. Começa com um rojão e não se sabe como vai acabar. A outra face da moeda é o endurecimento das leis contra manifestações políticas e o cerceamento das liberdades individuais, com o fortalecimento do chamado “partido da ordem”, que não precisa necessariamente ser de direita, sem falar no surgimento de bandos fascistas e de justiceiros.

Como dizia Bobbio em outro de seus artigos, “a política não pode absolver o crime”, como aconteceu com Cesare Battisti, terrorista das Brigadas Vermelhas condenado na Itália e que recebeu refúgio no Brasil.

Fonte: Correio Braziliense

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