Proposta em tramitação no Congresso permite enquadrar como terrorista quem participa de protestos violentos, com pena que pode chegar a 30 anos de prisão. Texto, no entanto, ainda não tem consenso entre os parlamentares
Amanda Almeida
O Senado prepara a votação de projeto que, segundo especialistas, abre brecha para a condenação de manifestantes como terroristas, com pena de 15 a 30 anos de reclusão. A proposta virou prioridade na pauta dos senadores na esteira da morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, atingido com um rojão durante um protesto no Rio de Janeiro. O PT se posicionou ontem contrário ao texto pronto para votação em plenário, mas, afinado ao Palácio do Planalto, admitiu que tem pressa na apreciação de alguma matéria em relação ao tema, por causa da proximidade da Copa do Mundo e da repercussão negativa na mídia estrangeira sobre a segurança pública no país.
O texto, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), não tem consenso entre os senadores, mas o apoio de bancadas expressivas, como a dos próprios peemedebistas, que devem ficar com a relatoria do projeto no plenário. A matéria já passou por comissão especial e está pronta para a análise dos senadores. Em reunião ontem, os líderes partidários decidiram deixar a votação para daqui a 15 dias e, enquanto isso, tentar “ajustar” o texto de maneira que agrade à maioria das legendas. Uma das ideias é fazer um substitutivo à proposta, incorporando trecho do relatório sobre o novo Código Penal, que ainda aguarda votação e também trata do tema.
O texto de Jucá diz que terrorismo é “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”. Para especialistas, o conceito é vago. “Tal como esta redigido, o texto implicará não apenas a possibilidade de incriminar movimentos sociais, mas também violará diretamente o princípio da legalidade. Para que uma lei penal seja legítima, é preciso que ela defina de forma iniludível a conduta criminosa. Não basta dizer simplesmente que constitui crime infundir terror ou medo coletivo, porque esses conceitos são muito fluídos e incapazes de serem absorvidos pelos cidadãos”, avaliou Juarez Tavares, professor titular de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e subprocurador-geral da República aposentado.
Para a advogada criminal Fernanda Tórtima, pelo texto, “até mesmo uma briga de torcidas em estádio de futebol poderia ser considerada terrorismo”. “Afinal, há um pânico generalizado e ofensa à integridade física de pessoas. O mínimo que se pode esperar é que o legislador identifique a motivação do suposto agente terrorista”, comentou. Ela diz, ainda, que a necessidade da tipificação do terrorismo como crime é questionável. “Outra questão a ser pensada diz respeito à desnecessidade de criar um tipo penal de terrorismo em um país como o Brasil, que não tem nenhuma tradição nesse tipo de crime”, afirmou. Hoje, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, reapresentará projeto que tipifica o crime de desordem em local público.
AI-5
Líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE) é outro crítico ao projeto. “Uma lei geral demais, como essa do terrorismo, pode levar a excessos do Estado contra o cidadão. O Brasil não precisa de outro AI-5.”
Jucá, entretanto, defende o projeto. “No meu texto, há especificamente a definição do que é o crime de terrorismo. Esse texto foi aprovado por unanimidade na comissão mista do Senado e da Câmara”, disse o senador, acrescentando reiteradas vezes que o caso do cinegrafista morto no Rio não é terrorismo. O peemedebista diz que deve ser criada a tipificação do terrorismo, mesmo sem casos no Brasil, porque “o país tem que estar preparado para qualquer eventualidade”.
Embora tenham feito um esforço para desvincular a morte de Santiago e as manifestações pelo país de atos terroristas, o Planalto e os petistas cobraram agilidade na votação de matéria sobre o tema, frisando a aproximação da Copa. “A intenção é votar nas próximas semanas. Mas, na verdade, um entendimento é importante porque estamos nos aproximando da Copa e todos nós sabemos que podem acontecer muitas coisas para as quais precisamos estar preparados, tanto para não permitir que se caracterize manifestações como terrorismo, como para prevenir diante daqueles que, organizadamente, desejem espalhar o medo na população”, comentou Humberto Costa.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reforçou o discurso, dizendo que o Brasil precisa de uma lei antiterrorismo, mas com cuidado para que a “elasticidade da expressão não seja semelhante à dada pela ditadura”. “Redação de lei não pode se tomar com o assodamento, mas tem que se fazer com rapidez. Há que se dar a resposta.”
O que muda
Confira os principais pontos do PL nº 499/2013
Terrorismo
» Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa.
Pena
» 15 a 30 anos de reclusão
» Aumenta a punição em um terço, se o crime for praticado: com emprego de explosivo, arma química, biológica ou radioativa, ou outro meio capaz de destruir em massa; em meio de transporte público ou sob proteção internacional; por agente público, civil ou militar, ou pessoa que aja em nome do Estado; em locais com grande número de pessoas; contra os presidentes da República, da Câmara, do Senado ou do Supremo Tribunal Federal; contra chefe de Estado estrangeiro.
Palavra de especialista
Uma reação oportunista
Não há terrorismo no Brasil. O terrorismo como fenômeno de criminalidade está assentado em bases fundamentalistas, sejam religiosas sejam ideológicas. Terrorismo é muito mais do que as manifestações populares no país. O risco desse projeto em discussão no Senado é que permite interpretações equivocadas sobre terrorismo. O conceito usado está muito vago. É um cheque em branco. O que é provocar pânico? Não dá para ficar à mercê de interpretações. Do jeito que está, permitirá que pessoas que jamais praticaram terrorismo sejam punidas com penas altíssimas. Parece-me muito mais uma lei para atender a Fifa do que para atender uma demanda interna. É uma reação oportunista que decorre da aproximação da Copa, já que a morte do cinegrafista leva à repercussão negativa mundo. As leis existentes sobre crime já são suficientes para punir a prática da violência.(Cléber Lopes de Oliveira é professor de direito processual penal do UniCeub)
Tragédias
Os protestos que começaram em junho passado foram palco de 11 mortes. Santiago Andrade, entretanto, é a primeira vítima atingida diretamente por ato de violência. Saiba mais:
Belém
» Em 21 de junho, a gari Cleonice Vieira de Moraes foi atingida por gás lacrimogêneo lançado pela Polícia Militar, enquanto trabalhava durante protestos em Belém, passou mal e morreu.
São Paulo
» O estudante Marcos Delefrate, de 18 anos, morreu atropelado por um carro que furou bloqueio de manifestantes em Ribeirão Preto (SP) em 21 de junho.
» Em 26 de junho, o marceneiro Igor Oliveira da Silva, de 16 anos, foi atingido por um caminhão que fugia de uma manifestação numa ciclovia no Guarujá (SP)
Goiás
» Valdinete Rodrigues Pereira e Maria Aparecida foram atropeladas em 24 de junho enquanto bloqueavam uma área de protesto em Cristalina (GO). O motorista avançou, atropelou e fugiu do local.
Minas Gerais
» Durante um protesto em Belo Horizonte, em 26 de junho, Douglas Henrique de Oliveira, de 21 anos, caiu do viaduto José Alencar, na capital mineira. Luiz Felipe de Almeida caiu do mesmo viaduto em 22 de junho, e morreu após ficar internado 19 dias no Hospital João XXIII.
Piauí
» Paulo Patrick, de 14 anos, morreu depois de ser atropelado por um táxi durante manifestação em Teresina, em 26 de junho.
Rio de Janeiro
» Em 31 de julho, o ator Fernando da Silva Cândido morreu depois de inalar gás lançado pela polícia em protesto em 20 de junho do ano passado.
» O vendedor ambulante Tasman Amaral Accioly foi atropelado por um ônibus na manifestação de quinta-feira passada no Rio de Janeiro, a mesma em que cinegrafista Santiago Andrade foi atingido pelo rojão que o matou.
Colaborou Grasielle Castro
Fonte: Correio Braziliense
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