Não faltam desafios para o próximo mandato presidencial. São vários os sintomas de que o "novo modelo de desenvolvimento", o "novo paradigma de política econômica", ou que nome pomposo se queira dar às políticas do atual governo, não têm produzido os resultados esperados. Há uma sensação generalizada aqui e lá fora de que estamos improvisando e empurrando decisões com a barriga. Até quando?
Diante desse quadro, segue-se a pergunta: apresentarão os candidatos à Presidência programas de governo que permitam ao eleitor compreender a visão que cada qual tem a respeito desses desafios e conhecer as escolhas políticas que cada um pretende fazer para enfrentá-los? Ou assistiremos novamente, como tem sido a regra nas últimas disputas, a uma campanha desprovida de conteúdo programático, reduzida a apelos publicitários relativos a reais ou supostos atributos pessoais dos candidatos e a vagas proposições de mais bondades a serem oferecidas (fantasiosamente sem custos e sem sacrifício de nenhum outro objetivo desejável) pelo futuro governo?
É certo que programas de governo devem ser traduzidos em linguagem mais acessível ao eleitor comum e que uma campanha para ser bem-sucedida deve mobilizar sentimentos em torno de uma simplificada ideia-força. Pelo menos assim reza a sabedoria política convencional no Brasil. Ela, porém, não apenas dificulta tornar mais informado o voto do eleitor, como também enfraquece o mandato recebido das urnas pelo eleito.
Quando o marketing substitui o programa, o mandato que sai das urnas sinaliza mal o caminho a seguir. Se, de um lado, o mandatário recebe um cheque meio em branco, de outro, ele se vê desprovido da legitimidade política que só um mandato mais programático lhe pode conferir. Esvaziado do confronto de ideias, o processo eleitoral perde assim, em grande medida, a dupla função de engajar o eleitor no debate sobre os rumos da gestão governamental (parte da educação para o exercício da cidadania) e de responsabilizar o eleito pela realização do programa apresentado, conferindo maior densidade política ao mandato recebido das urnas. Fosse maior a responsabilidade gerada pelo processo eleitoral, mais transparentes teriam de ser as negociações do presidente eleito na composição de sua maioria parlamentar, hoje feitas com base na troca de apoio congressual por cargos no Executivo. Sem nenhuma vinculação programática, essas negociações comprometem ainda mais a inteligibilidade do mandato recebido das urnas.
Em resumo, o confronto de programas nas eleições não é a panaceia para todas as imperfeições na nossa democracia, mas é uma condição essencial para fortalecer o nexo entre as preferências do eleitorado e as escolhas políticas do presidente eleito. Se ocorresse, ele reforçaria o mandato presidencial, como instrumento de delegação de poder, de um lado, e de ação política, de outro, dentro dos limites da legalidade e sem prejuízo do sistema de pesos e contrapesos que limita a vontade presidencial. Recorro a um exemplo próximo para fazer o contraste.
Recente eleição no Chile levou novamente à Presidência Michelle Bachelet. Ela apresentou ao eleitorado um bem articulado programa de governo. Comprometeu-se a expandir o ensino superior público e a pôr fim ao sistema eleitoral que restringe a representação de partidos menores e virtualmente força um empate entre direita e esquerda no Congresso chileno. Para financiar o ensino superior gratuito propôs um aumento de tributos, sobre as empresas, equivalentes a 3% do PIB. Disse o que ia fazer, explicou de onde tiraria os recursos para fazê-lo e conseguiu o apoio da maioria dos eleitores para realizar a sua proposta. A coalizão de partidos que a apoia conquistou também número suficiente de cadeiras no Parlamento. O governo de Bachelet está comprometido com a reforma do ensino superior e será cobrado por ela. Idem em relação à reforma eleitoral.
No Brasil, os candidatos em geral buscam se associar a ideias-imagens de compreensão instantânea e se refugiar em generalidades que não desagradem a nenhuma parcela significativa do eleitorado. Para públicos específicos a regra são as propostas ao gosto do freguês, não raro inconsistentes entre si: câmbio competitivo para a indústria, salário real mais alto para o trabalhador, mais recursos para o Bolsa Família e também para juros subsidiados para as empresas com acesso aos financiamentos do BNDES e ainda para o tomador de empréstimo do Minha Casa, Minha Vida e também e também..., numa adição quase infinita de bondades.
Há razões estruturais e históricas por trás da debilidade na formação do nexo eleitoral no Brasil - o País é regional e socialmente muito heterogêneo, a massa do eleitorado ainda é relativamente pouco escolarizada, os partidos são em grande número e pouco programáticos, etc. Nada disso, porém, exime os candidatos e as principais lideranças partidárias do País da responsabilidade de apresentar e se comprometer com programas de governo razoavelmente críveis e consistentes para o próximo período presidencial.
Governar é fazer escolhas, dizia Pierre Mendès-France, um grande político francês, ministro e depois adversário de De Gaulle. Escolhas terão de ser feitas para que o quadro de dificuldades crescentes que o Brasil enfrenta possa ser superado no próximo mandato presidencial: abriremos mais a economia, manteremos o Mercosul como está, retomaremos a discussão sobre a reforma previdenciária, criaremos alguma regra para a expansão do gasto corrente, enfrentaremos a regressividade do sistema tributário, daremos prioridade às energias renováveis?
Os candidatos e seus partidos têm a obrigação de ser claros quanto às escolhas que pretendem fazer, se eleitos, sobre essas e outras questões. É responsabilidade da imprensa e da sociedade exigir o cumprimento dessa obrigação.
*Sergio Fausto é superintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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