• Coletâneas de ensaios e poesias serão lançadas em novembro, quando o acadêmico completaria 80 anos
Mariana Filgueiras – O Globo
RIO — As cartas de despedidas são sempre desconcertantes. Na abertura da coletânea de ensaios literários "Reflexos do sol posto", livro inédito que Ivan Junqueira deixou no prelo para ser lançado em novembro pela Rocco, quando faria 80 anos, o que o acadêmico faz é praticamente uma delas, disfarçada de uma introdução comovente.
Escreve o poeta: “Esta é — tenho quase a plena certeza — minha última coletânea de ensaios. Faz muito que já abandonei a militância crítica em jornais e revistas, o que contribuiu, de forma significativa, para que se reduzisse a minha produção seja como ensaísta, seja como crítico literário. Por outro lado, já não é o mesmo o interesse, muito vivo até bem pouco, que desde sempre me moveu a escrever sobre meus contemporâneos.
E não é o mesmo, também, o ânimo de dar seguimento a uma trajetória que considero praticamente encerrada. Não foi pouco, mas está longe de ser fluvial, o que escrevi nas áreas do ensaio e da crítica desde 1965, quando se publicaram meus primeiros textos do gênero nas páginas da revista (há muito extinta) Cadernos Brasileiros, a convite de Nélida Piñon. Enfim, de 1980 para cá, foram 13 títulos, incluindo-se entre eles o que ora se dá à estampa. Estou hoje inteiramente dedicado à poesia que ainda me resta escrever, e já nem sei se me será possível fazê-lo como desejaria.”
Com uma longa trajetória como crítico e ensaísta (seus primeiros textos do gênero foram escritos na década de 1960), Junqueira reúne nesse livro críticas e análises feitas depois do ano 2000, refletindo sobre o cenário nacional das letras. Machado de Assis, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto estão entre os autores cuja obra o poeta e ensaísta se detém em reflexões profundas.
Em um dos ensaios, ele foca nos cem anos de “Eu”, obra de Augusto dos Anjos. Junqueira analisa a importância do poeta diante de diferentes aspectos: sua obra, trajetória e todo o cenário literário do período em que viveu. Uma existência pobre e uma vida sem grandes atrativos, mas um livro que resistiu ao tempo e até hoje encanta os leitores brasileiros. “Completa agora cem anos. E insiste em não morrer”, afirma em seu texto.
O tom de despedida também está em dois poemas que integram a coletânea “Essa música”, o segundo volume que Ivan Junqueira deixou pronto para publicação na editora Rocco. Um é intitulado “Despedida”, e o outro, “Dizer Adeus”:
Despedida
Estamos indo embora. Sobre o piso de ardósia,
por entre caules e corolas que exalam um perfume exótico,
os gatos deslizam. São espíritos leves e sóbrios,
com suas patas de veludo, silenciosas,
que arranham a lombada dos livros e o verniz dos móveis.
Os tapetes abafam seus passos ociosos,
como se faz quando se acolhem os órfãos.
Doze anos se passaram, e estamos indo embora.
A brisa do mar, com seus úmidos braços, nos envolve
e empurra para um outro promontório,
uma outra dimensão de nossa breve história,
de que somos, se tanto, transitórios hóspedes,
peças de um tabuleiro onde o tempo as desloca,
alheio à inútil engrenagem dos relógios,
cujas horas se dissolvem numa névoa incorpórea.
Tanto aqui se escreveu em verso e prosa:
romances, elegias, baladas, novelas e toda uma prole
de rascunhos que iam da perífrase ao apólogo.
Tanto aqui se ouviram o lamento de um fagote,
uma ária de ópera, a lenta pulsação de um órgão,
a inquieta truta de um quinteto de cordas,
essa insistente música que ecoa na memória
e que não pode (nem quer) ir-se embora.
Como estancar as vozes e os acordes
do Réquiem em que Mozart brindou à própria morte?
Como esquecer, Palestrina, teu Kyrie, teu Sanctus, teu Gloria?
Como calar esse jorro de notas, essa clave de sol
na partitura de uma noite em que faz frio e chove?
Estamos indo embora. Passem o trinco nas portas
e tranquem as janelas pelas quais rompia a aurora.
Apaguem-se a lua e as estrelas, o monólogo
do sabiá na varanda, as nervosas
mãos do vento a sacudir os vitrais da abóbada.
Levem tudo: quadros, taças, santos barrocos, oratórios,
todo esse insólito e cediço espólio.
Bebeu-se aqui o álcool da vida até o último gole.
Não se esqueçam da arca que ficou no sótão.
Desliguem a luz (e o gás, senão tudo explode).
Que fique o resto como esmola. Paguem um óbolo
ao barqueiro que nos leva rio afora.
Estamos indo embora.
Dizer Adeus
É difícil dizer adeus,
e não só (pondera) aos teus,
aqueles que foram teu sangue
e agora são matéria exangue,
mas também aos que, fiéis,
estiveram quase a teus pés,
mudos, solícitos, leais,
cônscios do que é o nunca mais.
Difícil dizê-lo à mulher
que se quis e não mais se quer.
O adeus não é um até breve
ou algo fátuo que se escreve
numa folha deitada ao vento,
avessa à mágoa e ao sofrimento,
lágrimas de olhos que não choram,
mãos que acenam e vão-se embora.
Não é fácil dizer adeus
nem ao demônio nem a Deus,
tampouco ao cão que te servia,
na selva escura, como guia.
Não é fácil dizê-lo à vida
o mais obstinado suicida,
e até mesmo o mártir, ao ir-se,
da carne reluta em despir-se.
Dizer adeus é o mais difícil,
o mais antigo e árduo suplício.
Terá Cristo o dito na cruz
ao despedir-se de Jesus?
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