• No Brasil, que um dia contou com centro político moderador entre extremos, gente assim faz falta
- O Estado de S. Paulo – Aliás
Liderança é palavra gasta. A todos ocorre, poucos compreendem e muitos a confundem com poder. Ao poder bastam os meios: um porteiro tem poder; um sargento, um empresário também. Presidentes têm. Mas liderança é outra coisa. Difícil medir. Adquiri-la demanda talento. Ninguém compra, aluga ou reivindica. É exercício que não se ensina, mas se aprende, supõe percepção apurada do mundo e das circunstâncias, trânsito, abrangência, articulação, sagacidade, sedução, astúcia, coragem, certo atrevimento e, ao mesmo tempo, temperança.
O Brasil passa por uma crise de liderança. Nem sempre foi assim: já houve líderes às pencas, paridos da escuridão das crises. Com tantas crises, vários surgiram. No desafio de consolidar a democracia e instaurar a estabilidade, emergiu Fernando Henrique Cardoso. Com a tarefa de reafirmar a estabilidade e estender a inclusão, confirmou-se Luiz Inácio Lula da Silva. Cada um a seu modo, FHC e Lula são, talvez, os últimos líderes de verdade do Brasil atual.
Mas, vertiginoso, o tempo passa também para eles. E o País carece de quem saiba conduzir processos políticos com habilidade e visão amplas. Esses assim são raros. O controle burocrático – caso da presidente Dilma – não faz ninguém líder. Vocalizar apenas parte da sociedade, bradar eficiência, como Aécio, não basta. Tampouco o líder se reduz a representar justos sonhos e anseios de vanguardas, como Marina. Liderança é habilidade essencialmente política, pragmática. Implica, sim, a submissão da burocracia a um projeto, a capacidade de gestão para realizar, é claro, e, evidentemente, alguma dose de sonho para buscar o futuro. Líder é tudo isso num só.
Há enorme esforço social e político para formá-lo. Ele não nasce das escolas, embora o conhecimento ajude. Não brota de fratricidas disputas partidárias, ainda que elas calejem. O líder tem um jeito especial – um dos apelidos de Vargas era Jeitúlio: sorriso enigmático, timing, sedução... Algo raro. Desgraçadamente, a consolidação de lideranças assim tem sido impedida por cruel destino.
Novamente cada um a seu modo, nos últimos anos despontaram Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), Marcelo Déda (PT-SE), Eduardo Campos (PSB-PE), aparentemente possuidores dessas características. Jovens, coincidentemente, do Nordeste – “a Bahia tem um jeito...” –, eram a negação do carrancudo estilo do Sul-Sudeste, a pálida e apática sociedade pós-industrial. Expressavam a malemolência dos trópicos, no confluir de sinhozinhos e moleques. Uma fórmula antes da antropologia que da sociologia.
Os que conviveram com Luís Eduardo, Déda e Eduardo testemunham a incomum capacidade de agregar, não subtrair, articular maiorias. O diálogo aberto, o trânsito pelos partidos, o humor, o sorriso, a sofisticação de raciocínio, a facilidade da aproximação, a confiança, o pragmatismo e a recusa em fazer inimigos que não pudessem vir a ser aliados... Vidas ceifadas, caminhos interrompidos: o coração de Luís Eduardo, o câncer de Déda, o desastre de Eduardo. A impiedosa sorte, que dá e retira.
No Brasil, que um dia contou com centro político moderador entre extremos – das raposas do PSD aos liberais do MDB – e hoje se corrói na metástase fisiológica, gente assim faz falta.
Cenários de eventuais governos Dilma, Marina ou Aécio permitem imaginar essa falta: é óbvio que a economia não vai bem e qualquer ajuste que se faça – ou não se faça – trará custos consideráveis, reações imprevisíveis. Ruas inquietas, movimentos sociais, novos e antigos, a ocupá-las com virulência. Congresso desacreditado, ausência de expressão política, oportunismo voraz. Serão artigos de primeira necessidade o pragmatismo, a habilidade, o diálogo e o indescartável auxílio do carisma. Presidentes da República, Dilma, Marina ou Aécio deterão o poder, de direito. Mas o fato é que pode lhes faltar – tende a lhes faltar – a imprescindível liderança.
No entrechoque da sociedade moderna com a antiga há a necessidade de superação progressiva dos conflitos. Há o imperativo de um governo ativo, liberto das amarras da resignada governabilidade defensiva, do tipo e da fase do presidencialismo de coalizão que temos hoje. Quem realizaria a tarefa?
Presidentes, nem todos possuem a liderança que a circunstância requer. Na sua ausência, mandam buscar o que Eduardo Campos vinha cultivando. Na vitória eleitoral, ele a exerceria. Fora dela, a emprestaria na condição de interlocutor de interesses diversos, articulador do meio-campo, organizador à mesa de lulistas e tucanos, parte do PMDB, desenvolvimentistas, monetaristas, ambientalistas e novos atores sociais.
Surgirão novas lideranças? Essa é a grande pergunta para o Brasil. É possível. A crise as viabiliza – foram os casos de Ulysses e Churchill. E crise virá. Luís Eduardo, Déda e Eduardo estavam prontos. Outros terão que se fazer: Haddad (SP), Kassab (SP), ACM Neto (BA), Richa (PR), Paes (RJ), quem mais possa surgir do improvável, estão num estágio inferior. Assumirão seus papéis? Em que condições vingarão? Liderança é palavra gasta. Que não seja letra morta.
*Carlos Melo é cientista político e professor do Insper
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