• Costumo deixar um espaço para o imprevisível, mas nos últimos tempos ele tem exagerado
- O Globo – Segundo Caderno (24/8/2014)
“Deus não joga dados”, disse Einstein. Roleta-russa, quem sabe? Einsten falava de mecânica russa, da previsibilidade da posição das partículas num determinado momento no espaço. Deus não joga dados quando se trata da previsibilidade da morte humana. Mas quando, onde e como é o jogo que resta. Esses termos permitem milhares de combinações e nos jogam num gigantesco cassino.
Numa semana marcada pelo luto no Brasil não pude deixar de refletir sobre a morte no interior de Santa Catarina, de onde acompanhei o funeral de Eduardo Campos.
Lembrei-me do livro de Jacques Derrida: “Cada vez único, o fim do mundo”. É um conjunto de discursos fúnebres pranteando amigos onde de uma certa maneira condena o discurso da morte do outro que procura extrair dela um beneficio, tirar dela uma força suplementar contra os vivos.
É possível falar da morte para além dos interesses políticos ou do espetáculo? Da morte apenas, desse gigantesco enigma que cada um carrega dentro de si: quando será o fim do mundo dessa totalidade singular, logo insubstituível?
Num dos mais belos livros dos anos 1950, “A morte e a morte de Quintas Berro D’Água”, Jorge Amado me deu a primeira lição de triunfo sobre a morte. É a historia de um funcionário público transformado em boêmio e que deixa seu próprio funeral com os malandros e putas para uma bebedeira no mercado. Quincas Berro D’Água morre, finalmente, numa tempestade no mar.
Mais tarde compreendi melhor esse texto lendo um comentário de Octavio Paz: “A poesia é a maneira de triunfar sobre a morte”.
Jorge Amado quis dizer isso com a bebedeira de Quincas Berro D’Água. Aquele porre com amigos, no mundo que Quincas amava, tinha o valor etéreo de um poema, de um triunfo sobre a morte.
Um dos temas que mais me fizeram refletir nesses dias foi a imprevisibilidade na vida humana e como isso abalava inclusive parte do meu trabalho na CBN.
Refiro-me à previsão dos principais fatos da semana. Costumo sempre deixar um espaço para o imprevisível, mas, nos últimos tempos, ele tem exagerado.
No dia do funeral de Eduardo Campos, em Ipanema, um assaltante entrou na igreja e fez refém o padre que rezava a missa.
Tudo isso me faz cada mais humilde nas previsões, tanto na política como na sociedade, ambas altamente influenciadas pelo destino das pessoas e de seu encontro marcado com a morte, sem data, hora e lugar.
A política, com suas certezas, nos convida para jogadas vitoriosas, o espetáculo nos diverte durante a tragédia.
Creio que talvez Drummond tenha tocado nesse tema com o verso: “Quem reconhece o drama quando se precipita sem máscara?”
As máscaras nos protegem da imprevisibilidade. Nelson Rodrigues tentou capturá-la de forma mágica, criando o Sobrenatural de Almeida. É uma descoberta, pois adicionou ao sobrenatural um sobrenome do nosso cotidiano. O sobrenatural é familiar como um vizinho com quem tomamos uma cerveja no botequim.
No entanto, é o sobrenatural.
A formulação de Nelson Rodrigues acaba iluminando a frase de Einstein: “Deus não joga dados”. O sobrenatural é algo inexplicável; o reino da natureza, o universo se explica com o intenso e inspirado trabalho da ciência.
O problema é que nosso destino, a política, a vida social não se regem pelas leis da mecânica quântica. Isto não significa que reneguemos a paixão de entender.
No momento, a crise racial nos Estados Unidos revela a fragilidade de muitas previsões otimistas, quando o pais elegeu um presidente negro.
O caldeirão continuava fermentando, e agora vemos como as previsões eram otimistas e continuamos a confundir a realidade com nossos desejos.
A imprevisibilidade se estende também ao momento que vive o Brasil. O que acontecerá nas eleições, que país sairá das urnas que energia podem gerar para resolvermos os grandes problemas nacionais?
Ironicamente, no momento em que vivemos nesse país imprevisível, um brasileiro conquista o maior prêmio internacional de matemática. Somos um país dos extremos: o matemático Artur Ávila e o Sobrenatural de Almeida nasceram em nossa terra. De uma certa forma, é possível aproveitar o legado dos dois: o respeito aos números e aos fatos, o empenho em explicar o que pode ser explicado, mas abrindo em nossas certezas o espaço para o imprevisível.
Sabemos que diante do rigor da matemática a vida aqui embaixo é impura, contraditória e absurda. É nela que estamos mergulhados. E é assim que ela aparece nos grandes romances, nas tragédias, nas peças teatrais em que saímos com vontade de ligar para os entes queridos.
Na semana do funeral, tempo chuvoso e frio nos arrozais de Santa Catarina, onde trabalhei. Ao voltar às ruas do Rio, as pessoas me perguntam: “E agora?”. “Agora não, daqui a pouco”, respondo. “Agora ainda não acabou”.
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