• Falta de transparência nas finanças fere a democracia do país
- Valor Econômico
Nos últimos dias uma discussão insólita permeou a preparação de uma mudança da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que terá que ser enviada ao Congresso este mês, para adequar a lei ao resultado fiscal possível para este ano. Técnicos do Tesouro Nacional se dividiam entre reduzir a meta de superávit primário do governo central ou aumentar o montante do abatimento possível. A diferença, para a economia, é rigorosamente nenhuma. A forma de empacotar a notícia é que, na visão de alguns, poderia ter maior ou menor repercussão.
A LDO, que orientou a elaboração do Orçamento para este exercício, previa um superávit primário do governo central de R$ 116,072 bilhões. Esse valor, porém, estaria sujeito a abatimento de até R$ 67 bilhões, se necessário. Com as estatais federais em equilíbrio, a meta fiscal menos o desconto máximo, portanto, cairia para R$ 49,072 bilhões. De janeiro a setembro houve déficit primário do setor público de R$ 15,28 bilhões, o equivalente a 0,4% do PIB. No governo central o rombo chegou a R$ 19,47 bilhões em nove meses. Só um milagre transformaria esse buraco no superávit previsto até dezembro.
As contas do governo central envolvem as receitas e despesas do Tesouro Nacional, da Previdência Social e do Banco Central. Os dados consolidados do setor público agregam os resultados dos governos estaduais, municipais e suas empresas. Só em setembro o déficit consolidado foi de R$ 25,5 bilhões. Desses, o governo central, os governos regionais e as empresas estatais apresentaram, respectivamente, déficits de R$ 21 bilhões, R$ 3,1 bilhões e R$ 1,4 bilhão.
Ao mesmo tempo em que gasta além das suas posses, o governo vinha, também, resistindo a mudar a meta de superávit primário com a qual o ministro da Fazenda se comprometeu: 1,9% do Produto Interno Bruto (PIB). Não se trata somente de um amontoado de números que só interessam aos economistas e nada dizem aos cidadãos. Ao contrário, os contribuintes são chamados a pagar essas contas.
O não cumprimento da meta é apenas um lado da acelerada deterioração das contas públicas nos últimos dois anos que levou o déficit nominal (que contabiliza também os juros) a praticamente dobrar, saindo de 2,48% do PIB em 2010 para 4, 92% do PIB em 12 meses até setembro, ou seja, um "rombo" de R$ 249,7 bilhões. A dívida bruta do setor público em igual período era de R$ 2,7 trilhões (56,7% do PIB) e subiu para R$ 3,13 trilhões (61,7% do PIB).
As implicações do descompromisso do governo com uma gestão fiscal mais austera, compatível com a politica de controle da inflação e com a desejada redução da taxa de juros são, também, de ordem democrática. Ao corromper todas as métricas das finanças públicas com artimanhas contábeis e ao insistir em sustentar compromissos que sabidamente não serão cumpridos, subtrai-se do cidadão a possibilidade de compreender e de fiscalizar o destino que o governo está dando aos pesados impostos que ele paga.
Há uma tradição, no Brasil, de não se levar a sério o orçamento público. É conhecida a história de que, por aqui, o Orçamento sempre foi uma peça de ficção. Nos tempos da ditadura militar, existiam dois orçamentos sendo que o que o Congresso analisava e aprovava era o menos importante. O que retratava melhor as prioridades do governo era o orçamento monetário e a conta movimento, pela qual o Banco do Brasil financiava os gastos públicos à revelia do parlamento. Com a democratização, a regulação das finanças públicas foi, com muito esforço, melhorando até se chegar à Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000.
A história do orçamento está na gênese de inúmeras revoltas pelo mundo, se confunde com a própria criação do parlamento e finca raízes democráticas na gestão das contas públicas desde o século XIII. O seu embrião surge na Inglaterra, em 1215, quando da Magna Carta, assinada pelo rei João Sem Terra, que limitou o poder de tributar da realeza. Só muitos séculos depois é que incorporou-se a despesa, consolidando o orçamento que passa a ser um importante instrumento da política econômica do Estado.
No Brasil, a Revolta de Felipe dos Santos, a Inconfidência Mineira, a Guerra dos Farrapos e o Levante dos Quebra-Quilos, entre os anos de 1700 e 1800, retratam a indignação do povo com a cobrança de impostos e a ausência dos interesses coletivos na definição das prioridades do gasto público.
Os estudiosos conferem à lei orçamentária o mais elevado grau de relevância nos regimes democráticos. Nos últimos anos, porém, a falta de transparência com que o Tesouro Nacional vem tratando as finanças do Estado fere a democracia brasileira. A concessão de subsídios sem sua devida contabilização como despesa no Orçamento, o endividamento acelerado para repassar recursos aos bancos públicos, os financiamentos a juros módicos feitos a poucas empresas, comprometem o futuro da política fiscal sem que Congresso e sociedade saibam exatamente o que acontece.
O governo justifica os déficits com frustração de receitas. Em uma economia estagnada as receitas com impostos não crescem mesmo. A estagnação / recessão em curso, porém, não tem nada a ver com uma suposta crise internacional. Ela foi produzida aqui mesmo. Com "novo governo, novas ideias", abre-se a oportunidade de consertar os erros cometidos ou continuar com "mais do mesmo". Decisões que forem tomadas agora vão definir se o país volta a crescer ou se afunda de vez em uma recessão.
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