Vanessa Jurgenfeld – Valor Econômico
"Fora o Meirelles [Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central], é difícil encontrar alguém mais ortodoxo do que o Joaquim no Brasil". A frase foi dita pelo economista Edmar Bacha, diretor da Casa das Garças, um instituto de estudos de política econômica que reúne economistas liberais. "Ela [Dilma] colocou lá um símbolo. Deve ter sido difícil para ela, porque está sendo altamente criticada tanto no PT quanto entre os economistas de Campinas", afirmou nesta entrevista ao Valor.
Integrante do governo Fernando Henrique Cardoso durante a elaboração do Plano Real, Bacha parece animado com os discursos mais "modernizantes" neste início de segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Encantado com o reatamento das relações diplomáticas entre EUA e Cuba, ele aposta em oportunidades para o Brasil. "Achei extraordinário. Estava lá [nos EUA] no dia e fiquei emocionado", disse. "Estamos num momento crítico no hemisfério e o Brasil tem a oportunidade de assumir uma liderança que perdeu".
O economista sugere a retomada das negociações de uma área de livre comércio entre os países americanos para que a economia brasileira volte a crescer. "Em maio vai ocorrer a Cúpula das Américas para a qual Cuba está convidada pela primeira vez desde a Revolução Cubana. Por que Dilma não aproveita essa oportunidade e relança a Alca?". Para Bacha, isso seria um sinal de que as coisas realmente mudaram na política econômica brasileira.
Embora entenda o ajuste do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, como a direção necessária, diz que 2015 "provavelmente" será ano de recessão. Algo que o preocupa mais do que os rumos da macroeconomia, porém, são os efeitos paralisantes que podem ter os desdobramentos da Operação Lava-Jato, que envolve Petrobras e empreiteiras. A seguir, trechos da entrevista.
Valor: O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tem falado sobre uma nova política econômica, que inclui não ter um crédito tão expansivo e uma nova rodada de abertura econômica. Essas mudanças serão capazes de trazer o crescimento?
Edmar Bacha: Eu acho que sim. Acho que, nesse sentido, o discurso dos ministros atuais é bem mais modernizante do que o dos que saíram. Obviamente, Joaquim é até um ponto fora da curva. Mas se for ver, por exemplo, o ministro das Relações Exteriores, a ênfase do seu discurso foi toda no sentido de que precisamos fazer acordos comerciais com todo mundo. O novo ministro da Indústria e Comércio falou 'vamos para o ataque, eu e a Kátia'. Kátia Abreu falou em 'abrir mercados onde tiver'. O câmbio está ajudando também. Isso facilita bastante as coisas, mas tem essa consciência de que não podemos continuar neste modelo de economia fechada. Isso transparece nos discursos de vários ministros e eu acho que isso é uma coisa boa.
Valor: O sr. tem defendido que o país aumente a sua exportação e tenha uma maior integração nas cadeias mundiais. Isso resolveria o problema do crescimento?
Bacha: Teria um impacto modernizador. É uma coisa boa por quatro razões. Primeiro, porque se absorve tecnologia mais moderna. Segundo, porque você pode ter escala maior de produção, portanto, menores custos e maior produtividade, porque vai ter um mercado maior. Terceiro, porque pode ocorrer maior especialização, não precisa produzir tudo em casa. Pode importar peças, componentes e se especializar em linhas (economias de escopo). Em quarto lugar, a maior concorrência. O presidente do conselho da Natura e do Iedi, Pedro Passos, falou uma coisa incrível em um seminário de inovação sobre por que as empresas não inovam. E ele falou: 'Inovar pra quê? Você não tem concorrência'... A inovação depende de você ter que concorrer, sair na frente e reduzir custos. Se não há concorrência, não há incentivo. Não adianta querer a partir do governo induzir as empresas oferecendo linha de crédito na Finep, porque o cara não vai nem lá buscar. O que você precisa é um ambiente que dê incentivos para inovar. E economia fechada não dá esses incentivos.
Valor: Entre esses fatores que citou não há uma diferença central para o crescimento do país entre absorver tecnologia e, de outro lado, desenvolver tecnologia própria?
Bacha: Isso depende. Quando você está falando de agricultura tropical, não tem onde buscar. Se quer fazer agricultura tropical em massa, tem que inventar maneiras de tornar o solo compatível com a produção. A Embrapa fez isso. Agora, quando está falando de computadores, não precisa inventar o computador de novo, como quisemos fazer em 1984 com a Lei da Informática - vamos proibir a importação de computadores e fazer o computador nacional. Isso é uma receita para ficar atrasado. Pega a Coreia do Sul, ela inovou? Quer dizer, ela copiou. É só copiar, traz as empresas para cá que têm a tecnologia, se for essa a opção, e é a opção do Brasil - a Coreia do Sul resolveu fazer suas próprias empresas. Não é que seja preciso inventar. A tecnologia está disponível lá fora. É questão de adoção de boas práticas.
Valor: Qual a eficácia de uma nova rodada de abertura em um momento em que a economia mundial não consegue crescer, com vários países em dificuldades?
Bacha: Temos que pôr muita ênfase nos acordos comerciais. Há duas coisas importantes. Uma, que é mais ou menos óbvia, é fechar esse acordo Mercosul-União Europeia. Outra, é que a grande novidade em nível internacional foi o reatamento de relações dos EUA com Cuba. Achei extraordinário isso. O [Joe] Biden veio aqui e falou por uma hora com Dilma. Tenho certeza que meia hora foi sobre Cuba e a outra meia hora foi sobre a Venezuela. Então, estamos num momento muito crítico no hemisfério. E o Brasil tem oportunidade incrível de assumir uma liderança que perdeu e ao mesmo tempo promover uma abertura para os EUA, que são o nosso principal mercado para bens industriais.
Valor: Momento crítico?
Bacha: Em maio vai ocorrer a Cúpula das Américas, no Panamá, para a qual Cuba está convidada pela primeira vez desde a Revolução Cubana. Por que a Dilma não aproveita essa oportunidade e relança a Alca? Propõe aos Estados Unidos e ao resto dos países americanos o relançamento da Alca.
Valor: Há muitas críticas a um relançamento da Alca. Não vê riscos?
Bacha: Não vejo risco algum. Nosso único risco é ficarmos ricos e finalmente nos tornarmos um país integrado ao resto do mundo.
Valor: O sr. acredita que com uma integração via Alca o Brasil vai conseguir colocar mais produtos industrializados nos EUA?
Bacha: A indústria automobilística do México já não ultrapassou a indústria automobilística do Brasil? Ela já não é duas vezes mais produtiva do que a do Brasil?
Valor: E na avaliação do sr. a economia do México está melhor em termos de desenvolvimento econômico?
Bacha: O que a economia do México tem é uma falta de integração do norte com o sul. Isso é um problema. Mas as grandes empresas do México - como estudo recente da McKinsey mostrou - estão com crescimento da produtividade extraordinário, o que não ocorre no Brasil. A McKinsey encontrou no México uma economia de duas velocidades. Tem a economia das grandes empresas que vai muito bem, porque é uma economia que tem que concorrer com os EUA e que tem que exportar, e uma economia de pequenas e médias, que é uma m.. No Brasil, aparentemente, os primeiros resultados indicam, segundo 'paper' que estou fazendo com Regis Bonelli, o contrário: a produtividade que cresce é a das pequenas e médias. A das grandes está caindo no período que medimos, de 2007 a 2012. Isso ocorre porque as nossas grandes empresas não têm concorrência. É esse o capitalismo patrimonialista, como chamou o Levy.
Valor: O que o exemplo do México sinaliza para o Brasil?
Bacha: Indica que há um aspecto positivo [na abertura]: nossas grandes empresas vão se tornar mais produtivas. E, por outro lado, indica que temos que tomar cuidado para saber como as pequenas e médias vão se integrar nesse processo. Mas eu diria que as pequenas e as médias no México devem estar no comércio, não são exportadoras. O problema lá não é o setor exportador, mas o fato de que o setor exportador não foi suficientemente gerador de dinamismo para o resto da economia.
Valor: Não foi a forma de integração com os Estados Unidos que deteriorou as condições no México?
Bacha: Certamente não. O México teve a infelicidade de que, quando assinou o acordo, poucos anos depois a China teve acesso à Organização Mundial do Comércio. E os produtos que o México poderia exportar, talvez com essas pequenas e médias empresas mais intensivas em mão de obra, quem conseguiu exportar foi a China. O México teve o problema de não conseguir disseminar o crescimento, mas tem um setor dinâmico.
Valor: O México não cresceu significativamente nos últimos anos...
Bacha: É muito interessante que, mesmo com o fato de o México não ter crescido também desde os anos 80, a opção política que os mexicanos fizeram e estão fazendo é aprofundar a integração, a abertura e as reformas.
Valor: No Brasil, quando houve a abertura no início dos anos 90, vários setores tiveram dificuldades, até porque houve uma abertura com valorização cambial e sem proteção a setores industriais diante da nova concorrência. Qual é o risco de uma nova rodada fazer o mesmo e piorar o quadro?
Bacha: Aquilo ali foi feito ao estilo Collor [Fernando Collor de Mello], e foi do mesmo padrão que fizeram aquela reforma de m. no setor público. Tirou todo mundo que era CLT e todo mundo virou estatutário. Do mesmo tipo que fizeram a tentativa de estabilização maluca. Foi feito tudo "à outrance". Não é assim que a gente vai fazer da próxima vez. Vamos fazer a abertura do jeito que a gente fez o Plano Real: é pré-anunciada, é por etapas. E é com o cuidado de não ter sobrevalorização cambial.
Valor: E ela não quebraria determinados setores industriais?
Bacha: Você não vai fazer essa omelete sem quebrar alguns ovos. Se permitir que as empresas usem insumos mais modernos, ou as indústrias de insumos [no Brasil] se modernizam ou elas vão ter problemas. Agora, é uma questão de dar tempo ao tempo.
Valor: O sr. declarou voto em Aécio Neves, como avalia essas alterações tanto na equipe quanto na política econômica de Dilma?
Bacha: O discurso do Joaquim, do [Nelson] Barbosa, e os outros discursos estão numa direção mais modernizante, mas vamos ver se Dilma vai acompanhar isso ou não. Isso depende dela.
Valor: O sr. chegou a dizer que, se reeleita, Dilma quebraria o país. O sr. mantém essa afirmação?
Bacha: Eu temia isso. Mas ela teve uma primeira decisão e deve ter sido difícil para ela porque está sendo altamente criticada tanto no PT quanto entre os economistas de Campinas por colocar o Joaquim Levy lá [no Ministério da Fazenda]. Não existe ninguém mais ortodoxo no Brasil. Fora o Meirelles [Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central], é difícil encontrar alguém mais ortodoxo do que o Joaquim no Brasil. Ela colocou lá um símbolo. Acho que a direção é essa, a do ajuste. Obviamente há um problema muito sério, porque essas coisas você precisa fazer primeiro com convicção e segundo, com credibilidade. E, infelizmente, dada a experiência da Dilma no primeiro mandato, não parece que ela tenha convicção. E credibilidade ela não tem. O fato de ter que ganhar esse espaço torna o ajuste mais custoso e, portanto, mais problemático. É um problema que nós não teríamos.
Valor: Nós?
Bacha: A equipe do candidato para o qual declarei meu voto.
Valor: Entre as informações que já existem sobre o ajuste fiscal, o sr. considera corretas as restrições maiores no abono salarial, seguro-desemprego, pensões por morte, a elevação de impostos como a Cide, e os aumentos da TJLP e das taxas do Programa de Sustentação do Investimento?
Bacha: Acho que essas coisas, quanto mais forem feitas pelo lado do corte de despesas, melhor são. Essa é até uma questão não ideológica, porque, se você fizer pelo aumento de impostos, o Banco Central vai ter que apertar a política, porque vai existir repercussão sobre os preços. Portanto, se quiser fazer ajuste menos doloroso, terá que ser mais pelo lado do corte de gastos e de gastos que são improdutivos. Sobre a Cide, agora foi criado um espaço. A Petrobras está ganhando 40% no petróleo que importa ao preço que ela vende no mercado. Tem margem aí para aumentar a Cide sem elevar o preço do petróleo internamente, tirando do lucro da Petrobras.
Valor: Alguns economistas têm dito que impostos sobre as movimentações financeiras como a CPMF seriam menos danosos porque afetariam menos a disposição de investimento das empresas e das famílias. O que o sr. acha?
Bacha: Acho horrível CPMF, você vai taxar poupança e investimento. Melhor taxar renda direto, então. Um dos grandes escândalos do imposto de renda no Brasil são as inúmeras maneiras pelas quais as pessoas mais ricas conseguem escapar da taxação de 27,5% através dos mais diversos meios legais.
Valor: O ajuste vai ser recessivo? O ano de 2015 deve ser ano de recessão?
Bacha: Depende da maneira como ele for feito. Acho que o grande problema até não vai ser o ajuste. Há todas as consequências do escândalo da Petrobras para o investimento não só no óleo e gás, mas também para o investimento das empreiteiras. Acho que tudo isso é extremamente paralisante. Provavelmente será um ano recessivo.
Valor: Em relação à Petrobras, o que os episódios trazem de lição?
Bacha: Mostram, além da baixa produtividade da atual política, o poder corruptor de três características dessa política: monopólio estatal, reserva de mercado e conteúdo nacional. Isso é um caldo de cultura para a corrupção, além de ser caldo para a improdutividade.
Valor: O sr. entende a corrupção em estatais no Brasil como algo recente?
Bacha: Acho que vem de longa data. Lembro-me de uma frase famosa que o Mario Henrique Simonsen tinha dito a um ministro dos Transportes de então - que não vou dizer qual é - 'Mario, leva os seus 30%, mas não constrói a ponte, sai mais barato pra mim'. Então, esse é um problema que vem de longe, mas atingiu um grau extraordinário nos últimos anos a partir desse presidencialismo de cooptação.
Valor: É hora de trazer a discussão da privatização da Petrobras?
Bacha: Não acho que seja o caso. A Petrobras é uma empresa muito simbólica. É possível ter símbolos, desde que você garanta que tenham eficiência. Nos EUA, por exemplo, os correios e os aeroportos são públicos e a previdência social também é pública. Mesmo o país mais privatista do mundo se dá ao luxo de ter alguns símbolos importantes para a nacionalidade. A Petrobras assumiu essa característica desde a época do 'O Petróleo é Nosso'. Então, acho que dá para restaurar a Petrobras que a gente tinha antes.
Valor: O sr. tem um diagnóstico de que a economia brasileira está semiestagnada há 33 anos.
Bacha: O último ano que tivemos crescimento significativo foi 1980. De 81 para cá são 33 anos onde a média de crescimento da produtividade por trabalhador foi de apenas 0,3% ao ano. É algo ridículo. Algo que indica que não vamos sair da renda média tão cedo [se continuarmos] nesta batida. O problema do longo prazo que determina o crescimento da economia é a produtividade.
Valor: O sr. participou da formulação do Plano Real. Por que ele não resolveu o problema do crescimento?
Bacha: Houve duas coisas. Por um lado, a economia internacional não ajudou. Desde o plano, em 94, houve uma série de crises: a do México em 95, a asiática em 97, e a russa em 98. Depois, nós mesmos não conseguimos sustentar nosso câmbio fixo e acabamos na crise de 99. Em seguida, teve a da Argentina entre 2001 e 2002. Internamente, também houve a crise energética em 2001. Foi um conjunto de circunstâncias muito pouco propício ao crescimento até 2003. De ou2tro lado, não nos esqueçamos que houve um ajuste fiscal, que foi uma parte importante do plano. Mas foi um ajuste provisório aquele fundo social de emergência. Ele garantiu o equilíbrio no ponto de partida, mas logo em seguida, a partir de 95, as contas do governo, até o ajuste de 99, continuaram mal ajambradas. E o plano teve que se valer - na falta desse ajuste mais substantivo - muito das âncoras monetária e cambial, ou seja, de taxas de juros elevadas e câmbio sobrevalorizado. E isso ajudou muito pouco o crescimento.
Valor: O que vem impedindo o aumento da produtividade?
Bacha: A produtividade do trabalho pode ser decomposta em dois fatores. Ela pode ser elevada aumentando a quantidade de capital por trabalhador. Isso é algo que todo mundo fala, sobre aumentar poupança para poder ampliar o investimento. A gente nunca conseguiu recuperar taxas de investimentos nem de perto comparáveis com aquelas durante o milagre econômico. A taxa está nos 18% desde sempre, que é uma taxa baixa. O outro fator é a tecnologia. É possível aumentar a produtividade, mesmo com a mesma quantidade de capital por trabalhador, desde que sejam adotadas tecnologias mais avançadas. Cálculos preliminares do meu estudo com Bonelli indicam que no último quadriênio não houve progresso técnico, houve regressão técnica. Isso só havia ocorrido na nossa experiência história do pós-guerra durante a chamada década perdida [anos 80], que foi uma década em que se investiu muito pouco e quando houve também regressão tecnológica. A coisa espantosa é que não temos nem crise da dívida nem hiperinflação [como havia nos anos 80] e a gente teve regressão técnica nos últimos quatro anos.
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