domingo, 1 de fevereiro de 2015

Fernando Henrique Cardoso* - Chegou a hora

• Há o temor de a liderança nacional não perceber que a crise não é corriqueira, a Justiça precisa ter ousadia de chegar aos mais altos hierarcas culpados

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Quando eventualmente este artigo vier a ser lido, a Câmara dos Deputados estará escolhendo seu novo presidente. Ganhe ou perca o governo, as fraturas na base aliada estarão expostas. Da mesma maneira, o esguicho da Operação Lava Jato respingará não só nos empresários e ex-dirigentes da Petrobrás nomeados pelos governos do PT, mas nos eventuais beneficiários da corrupção que controlam o poder. A falta de água e seus desdobramentos energéticos continuarão a ocupar as manchetes. Não se precisa saber muito de economia para entender que a dívida interna (R$ 3 trilhões!), os desequilíbrios dos balanços da Petrobrás e das empresas elétricas, a diminuição da arrecadação federal, o início de desemprego, especialmente nas manufaturas, o aumento das taxas de juros, as tarifas subindo, as metas de inflação sendo ultrapassadas dão base para prognósticos negativos do crescimento da economia.

Tudo isso é preocupante, mas não é o que mais me preocupa. Temo, especialmente, duas coisas: o havermos perdido o rumo da História e o fato de a liderança nacional não perceber que a crise que se avizinha não é corriqueira - a desconfiança não é só da economia, é do sistema político como um todo. Quando esses processos ocorrem, não vão para as manchetes de jornal. Ao entrar na madeira, o cupim é invisível; quando percebido, a madeira já apodreceu.

Por que temo havermos perdido o rumo? Porque a elite governante não se apercebeu das consequências das mudanças na ordem global. Continua a viver no período anterior, no qual a política de substituição das importações era vital para a industrialização. Exageraram, por exemplo, ao forçar o "conteúdo nacional" na indústria petrolífera, excederam-se na fabricação de "campeões nacionais" à custa do Tesouro. Os resultados estão à vista: quebram-se empresas beneficiárias do BNDES, planejam-se em locais inadequados refinarias "premium" que acabam jogadas na vala dos projetos inconclusos. Pior, quando executados, têm o custo e a corrupção multiplicados. Projetos decididos graças à "vontade política" do mandão no passado recente.

Pela mesma cegueira, para forçar a Petrobrás a se apropriar do pré-sal, mudaram a Lei do Petróleo, que dava condições à estatal de concorrer no mercado, endividaram-na e a distanciaram da competição. Medida que isentava a empresa da concorrência nas compras se transformou em mera proteção para decisões arbitrárias que facilitaram desvios de dinheiro público.

Mais sério ainda no longo prazo: o governo não se deu conta de que os Estados Unidos estavam mudando sua política energética, apostando no gás de xisto com novas tecnologias, buscando autonomia e barateando o custo do petróleo. O governo petista apostou no petróleo de alta profundidade, que é caro, descontinuou o etanol pela política suicida de controle dos preços da gasolina, que o tornou pouco competitivo, e, ainda por cima (desta vez graças à ação direta de outra mandona), reduziu a tarifa de energia elétrica em momento de expansão do consumo, além de ter tomado medidas fiscais que jogaram no vermelho as hidrelétricas.

Agora todos lamentam a crise energética, a falta de competitividade da indústria manufatureira e a alta dos juros, consequência inevitável do desmando das contas públicas e do descaso com as metas de inflação. Os donos do poder esqueceram-se de que havia alternativas, que sem renovação tecnológica os setores produtivos, isolados, não sobrevivem na globalização e que, se há desmandos e corrupção praticados por empresas, eles não decorrem de erros do funcionalismo da Petrobrás, nem exclusivamente da ganância de empresários, mas de políticas que são de sua responsabilidade, até porque foi o governo que nomeou os diretores ora acusados de corrupção, assim como foram os partidos ligados a ele os beneficiados.

Preocupo-me com as dificuldades que o povo enfrentará e com a perda de oportunidades históricas. Se mantido o rumo atual, o Brasil perderá um momento histórico e as gerações futuras pagarão o preço dos erros dos que hoje comandam o País. Depois de 12 anos de contínua tentativa de desmoralização de quase tudo o que meu governo fez, bem que eu poderia dizer: estão vendo, o PT beijou a cruz, tenta praticar tudo o que negou no passado - ajuste fiscal, metas de inflação, abertura de setores públicos aos privados e até ao "capital estrangeiro", como no caso dos planos de saúde.

Quanto ao "apagão" que nos ronda, dirão que faltou planejamento e investimento, como disseram em meu tempo? Em vez disso, procuro soluções.

Nada se consertará sem uma profunda revisão do sistema político e mais especificamente do sistema partidário e eleitoral. Com uma base fragmentada e alimentando os que o sustentam com partes do Orçamento, o governo atual não tem condições para liderar tal mudança. E ninguém em sã consciência acredita no sistema prevalecente. Daí minha insistência: ou há uma regeneração "por dentro", governo e partidos reagem e alteram o que se sabe que deve ser alterado nas leis eleitorais e partidárias, ou a mudança virá "de fora". No passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se veem sinais.

Resta, portanto, a Justiça. Que ela leve adiante a purga; que não se ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, aos delegados ou à mídia. Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas, desde que efetivamente culpados. Que o STF não deslustre sua tradição recente. E, principalmente, que os políticos, dos governistas aos oposicionistas, não lavem as mãos. Não deixemos a Justiça só. Somos todos responsáveis perante o Brasil, ainda que desigualmente. Que cada setor político cumpra a sua parte e, em conjunto, mudemos as regras do jogo partidário eleitoral. Sob pena de sermos engolfados por uma crise que se mostrará maior do que nós.

--------------------------
*Sociólogo, foi presidente da República

2 comentários:

Fernando Carvalho disse...

Se o Brasil fosse um país sério o FHC deveria estar na cadeia por ter comprado sua própria reeleição e com isso corrompido uma tradição republicana. Hoje um prefeito, governador ou presidente da república quando chega ao poder faz planos para dois mandatos. Por ter vendido a Vale do Rio Doce na bacia das almas. Hoje faz pose de sábio estadista sem nunca ter sido. O melhor crítico de FHC foi o Millôr Fernandes que mostrou brilhantemente seu "sociologuês".

Fernando Carvalho disse...

O artigo de FHC diz que a Dívida INTERNA é de 3 TRILHÕES. Isso somado com a Dívida Externa resulta na DIVIDA PÚBLICA (Essa classificação é ilusória. Da Dívida Interna temos credores alienígenas e da Dívida Pública cidadãos particulares, nossa fedorenta burguesia). Alguém poderia me dizer quanto é 1,2 por cento da Dívida Pública que o Joaquim Levyathan vai reservar para os agiotas internacionais (e seus sócios brasileiros)?