- O Estado de S. Paulo / Aliás
• As adolescentes do Piauí tornaram-se presas fáceis de quem entende que ‘invasores’ existem para ser caçados e abatidos
Num dos últimos dias de maio, quatro garotas de classe média, entre 15 e 17 anos de idade, foram em duas motos até o Morro do Garrote, ponto turístico a alguns minutos de Castelo do Piauí, tirar fotos para compartilhar nas redes sociais. Foram abordadas e sequestradas por um adulto e quatro garotos também entre 15 e 17 anos de idade, todos da mesma localidade e pertencentes a famílias desorganizadas, vários com pais alcoólatras. O adulto, natural da localidade, passou por pelo menos dez cadeias diferentes no Estado de São Paulo. Tivera um estágio de traficante na Cracolândia. Retornara a Castelo do Piauí, a 190 quilômetros de Teresina, tendo levado consigo crack e maconha para lá botar o seu negócio. Os quatro moleques, de que se tornou “patrão”, tinham já uma sólida carreira na delinquência juvenil na cidade. Encontrou pronta a matéria humana para ali se estabelecer. Fornecia-lhes maconha e crack.
Envolvidos no resgate contam que as moças foram despidas, amarradas num cajueiro e amordaçadas com os próprios trajes. Tiveram pulsos cortados, mamilos e olhos machucados. Foram estupradas pelo adulto e pelos quatro menores e jogadas do alto do penhasco, de uma altura de 10 metros, sobre rochas pontudas, já com os corpos crivados de espinhos de cactos. Vendo que ainda estavam vivas, dois dos criminosos desceram ao buraco e tentaram matá-las com pedradas. Houve mais que estupro no sadismo que praticaram. Ensanguentadas, encontraram-nas policiais e patrulhas da população local. Uma delas morreria dias depois, outra ainda está hospitalizada em estado grave e outras duas já tiveram alta hospitalar.
Os componentes desse crime indicam nos criminosos a concepção de que para eles o outro é um ser descartável, para ser usado e jogado fora. Episódio, de algum modo, semelhante a outro, que teve grande impacto na consciência dos brasileiros, em 2003, que foi o caso Champinha, ocorrido no Embu, na Grande São Paulo. O adolescente, de 16 anos, agiu acompanhado de quatro adultos. Sequestraram, torturaram, estupraram a menina durante vários dias, mataram seu namorado com um tiro na nuca e ao final foi ela cruelmente golpeada pelo menor com um facão. Os dois mortos foram abandonados no mato.
Um detalhe importante, nos dois casos, é o da diferença social acentuada entre o algoz e a vítima. É a diferença de mundos que separa e até opõe pessoas socializadas e educadas em sistemas de valores e de normas que refletem muito mais que pobreza e riqueza. Os de um grupo estão de, algum modo, aprisionados numa visão de mundo arcaica em que homens e mulheres são situados numa relação de senhores e servas. É o chamado desenvolvimento desigual e combinado.
Nos estratos sociais mais altos e mais escolarizados, as mulheres têm hoje uma liberdade de circulação, de pensamento, de trabalho e de ação que não tinham há pouco mais de meio século. Tanto o caso do Embu quanto o caso do Piauí indicam que a mulher mais moderna não cercou de uma consciência crítica a geografia da nova feminilidade. Nela, mulheres e homens são juridicamente iguais, mas nem todos as consideram socialmente iguais. Há neste país um descompasso enorme e perigoso entre o que a lei e as instituições dizem que as pessoas são e o que a realidade diz que efetivamente são. É disso que se trata quando se fala em atraso e barbárie.
Os que se julgam cidadãos de uma sociedade igualitária tendem a supor que podem circular livremente até mesmo em espaços que não faz muito tempo eram interditados a muitos, pelos perigos que encerram, mas sobretudo aos mais frágeis: às mulheres, mas também às crianças. No Embu e em Castelo do Piauí foi esse o caso, além obviamente das motivações perversas dos agressores.
Essa geografia da desigualdade, com seus nichos e enclaves de perversidade, não tem demarcações visíveis como as da geografia da escola. Os limites entre os espaços de liberdade e vida e os espaços de violência e morte são culturalmente invisíveis. O que os de um lado veem, os de outro lado não enxergam nem reconhecem. Quando as meninas do Piauí foram, inocentemente, ao Morro do Garrote tirar fotografias, cruzaram essa linha de separação e entraram num território dominado por oposta concepção de vida e de liberdade. No Embu, o casal de adolescentes que ali fora para acampar e namorar atravessou a linha invisível que demarcava o território de Champinha e seus comparsas, em que aquele tipo de comportamento sugeria uma situação social de transgressão e violência permissível, como se o casal tivesse se despido de sua condição humana.
Mesmo grandes cidades brasileiras foram minadas pelo surgimento de enclaves territoriais invisíveis dominados pelo código social da barbárie, oposto ao código da civilização, em que os que inadvertidamente os invadem mudam de identidade sem o saber. Tornam-se presas fáceis de agentes de uma concepção de pessoa em que os invasores existem para ser caçados e abatidos. É o preâmbulo da cultura do vigilantismo, de medos e ódios.
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José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de Linchamentos - A Justiça popular no Brasil (Contexto)
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