• PT e PSDB continuam a agir como se a atual crise fosse passageira
A coluna da semana passada foi escrutinada por um leitor atento. Salvo engano, a pergunta que o leitor considerou ter ficado sem resposta foi: quais são as reais possibilidades de uma efetiva reforma do sistema político nas condições atuais? Em termos ainda mais concretos, a provocação foi formulada assim: "que estratégias são de fato possíveis para quebrar o peso do pemedebismo?".
Desde o Plano Real, em 1994, PSDB e PT se dedicaram unicamente à tarefa de conquistar e manter a liderança do sistema político. Não se preocuparam minimamente em transformá-lo. Terceirizaram para outros partidos a luta pela conquista de votos e o grosso da administração do sistema político.
Terceirização da política é outro nome para o projeto de dirigir o pemedebismo. A armadilha desse modelo está justamente em entregar a um partido uma liderança aparentemente inconteste, quando, de fato, essa liderança é muitíssimo limitada quanto a qualquer possibilidade de reforma autêntica do sistema. Como muitíssimo limitada é também a própria margem de ação do síndico do condomínio de poder.
Quanto mais os partidos líderes pretendem se manter como polos, tanto mais produzem fragmentação partidária, tanto mais se isolam em relação aos demais partidos, incluindo aí aqueles com que formaram alianças históricas em eleições presidenciais, por exemplo. Não por acaso, em momentos decisivos a armadilha pemedebista cobrou seu preço sob a forma da expulsão do círculo de poder. Aconteceu na passagem do período FHC para o período Lula. Aconteceu na passagem de Lula para Dilma.
O final do governo FHC foi bastante tumultuado. Não apenas pelo trauma do apagão de energia de 2001 e da desvalorização cambial de 2002. Do ponto de vista da aliança de governo, o principal parceiro, o PFL, foi alijado da chapa presidencial. A então pré-candidata do PFL à presidência, Roseana Sarney, teve sua candidatura inviabilizada por uma operação da Polícia Federal que apreendeu uma grande quantidade de dinheiro em espécie em seu escritório eleitoral. O PFL viu no episódio a digital de José Serra, que teve de se contentar com um apoio meramente formal do partido a sua candidatura presidencial.
O final do período Lula foi de grande euforia econômica. Mas foi também o momento em que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva deixou o governo e, em seguida, o próprio PT. Acabou se lançando candidata na eleição presidencial de 2010, tendo obtido uma expressiva votação pelo inexpressivo PV. Começou ali igualmente o afastamento de outro aliado histórico do PT, o falecido ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que viria a se lançar candidato na eleição presidencial de 2014. Em dobradinha com a mesma Marina.
Ao invés procurarem alargar sua influência para além de seus partidos, PT e PSDB se fecharam cada vez mais em si mesmos - sem com isso terem conseguido melhorar em nada a qualidade de seus próprios quadros, aliás. Pior ainda, jogaram todos os partidos e quadros na mesma vala comum pemedebista. Com o tempo, selecionaram os quadros mais adaptados ao pemedebismo e excluíram aqueles que poderiam colaborar em um projeto positivo de mudança. Expulsaram para o caminho da "terceira via" forças que poderiam ter legitimamente encontrado seu espaço em uma configuração menos exclusivista do gerenciamento da política. Trancaram-se no escritório do síndico do condomínio ao invés de colocarem sua energia em constituir autênticas frentes de situação e de oposição, por exemplo.
PSDB e PT gastaram toda a energia de direção de que dispunham para superar o antigo modelo nacional-desenvolvimentista que prevaleceu por cinco décadas, desde 1930. Conseguiram produzir estabilização político-econômica e fincar políticas sociais compensatórias na vida do país. Foi certamente de importância decisiva para consolidar a democracia e suas instituições. O problema é que isso não é mais suficiente. Formular e implementar um novo modelo de desenvolvimento exige agora enfrentar o pemedebismo. Já não basta apenas dirigi-lo, não há mais como simplesmente acomodar-se a ele.
Não obstante, os dois partidos líderes continuam a agir como se a atual crise fosse passageira, uma conjunção astral desfavorável a um e favorável a outro. Estão certos de que continuarão a ser os polos do sistema tal como funcionou nas últimas duas décadas. O PSDB já se engalfinha em uma precoce luta interna pela escolha do candidato a presidente, como se uma eleição lhe fosse cair no colo por gravidade histórica. O PT luta para manter a cabeça fora d'água, à espera de dias melhores. Parece que apenas o agravamento ainda maior da crise poderá levá-los a abandonar a ilusão de pretender preservar o modelo de liderar sem mais o pemedebismo. É o que pode fazer surgir uma nova atitude.
O atual sequestro da política pela dominância pemedebista exige audácia política como resposta e não a atual acomodação, o atual rebaixamento de expectativas. Exige a formulação de planos de desenvolvimento de longo prazo, capazes de convencer e de dar rumo e esperança. Exige a ampla reorganização das forças políticas em torno de novas e reais polarizações, para além da artificialidade da polarização do atual modelo.
Não é ainda tarde demais para abandonar o modelo dos dois diminutos polos líderes do sistema em favor de um rearranjo que consiga expressar minimamente as reais polarizações que eclodiram no Junho de 2013. A única coisa certa é que interpretar a crise atual como um mero acidente de percurso levará a prolongá-la indefinidamente, alternando momentos ruins e momentos muito ruins. Isso não quer dizer que enfrentar a situação de maneira inovadora signifique que o horizonte de superação será alcançado rapidamente. Muito menos que será fácil. Mas não há outro caminho à vista senão fazer agora o que não se fez em trinta anos de redemocratização em passo lento. Porque é de uma nova encruzilhada histórica que se trata.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
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