- O Estado de S. Paulo
Jô Soares entrevistou a presidente. “Morra, Jô Soares”, pichou um anônimo em frente à casa do apresentador, materializando no asfalto o ódio que já derramavam virtualmente as redes sociais. Uber faz sucesso no Brasil. “Vai ter morte”, disse representante de taxistas – com a mesma cortesia usada no trânsito – a deputados que querem regular o serviço de transporte particular.
Menina de 11 anos caminhava por avenida em trajes de Candomblé. Desmaiou ao ser atingida na cabeça por pedra atirada por homens que gritavam: “Sai demônio, vão queimar no inferno, macumbeiros”. As três cenas ocorreram na mesma semana, em locais tão distintos quanto o centro rico de São Paulo, o Congresso Nacional em Brasília e a periferia pobre do Rio de Janeiro. Ilustram como a intolerância crescente no Brasil não é só política, mas econômica e – novidade – religiosa. Chocam tanto pela contundência quanto pela banalização e ubiquidade do ódio.
Qualquer estatística sobre mortos no trânsito, pela polícia, por criminosos e mesmo por companheiros de bar ou de lar desconstrói o mito de que o brasileiro é cordial. Só neste século, quase 700 mil habitantes do Patropi abençoado por Deus foram assassinados por conterrâneos.
Meio milhão foi transportado involuntariamente ao cemitério por carros, motos, caminhões e ônibus. E, embora o Brasil não tenha declarado guerra oficialmente, 7 mil morreram em intervenções legais e operações bélicas (leia-se, pela PM).
Enquanto cultiva a autoimagem de nação sorridente e solidária, o Brasil é sinônimo de lugar violento na imprensa estrangeira. Após o assassinato de nove negros que rezavam em uma igreja nos EUA, um dublê de jornalista e estatístico gringo planilhou os dados de homicídios. Para provar que os afro-americanos vivem em constante perigo e enfatizar o tamanho do risco, tuitou que eles são vítimas de assassinato em taxa comparável à do Brasil.
Não é de hoje. A violência interpessoal antecedeu o desembarque dos portugueses. Canibalismo e guerras tribais foram erradicados porque os novos moradores dizimaram quem os praticava. Seguiram-se três séculos de escravidão oficial, quando açoitar, espancar ou mesmo matar alguém era prerrogativa do seu proprietário.
A violência foi e tem sido instrumento crucial para consolidar a regra do manda quem pode e obedece quem tem juízo. Da tortura de Estado disseminada na ditadura militar à lei do mais forte imposta pelo crime organizado nos presídios e comunidades pobres das metrópoles, a coerção e a intimidação são assíduos protagonistas da cultura de poder no Brasil. Por que, então, o choque com uma pichação, uma ameaça verbal ou mesmo uma pedrada?
Talvez porque os alvos desse uber ódio sejam tão inofensivos quanto um humorista, um aplicativo de celular ou uma criança. Se até eles ficaram à mercê dessa força irracional e imprevisível, ninguém mais está a salvo de ameaça ou de ter sua integridade física violada por motivos tão banais quanto a cor da sua roupa. A ubiquidade do ódio tomou o discurso político, fez de adversários inimigos e transformou sede de justiça em desejo de vingança. No caminho, desfez qualquer fio de cordialidade que ainda pudesse disfarçar a violência das relações sociais no Brasil. Fim da hipocrisia, saudarão alguns. A que preço?
Os EUA nem tinham velado os nove mortos na igreja de Charleston quando Barack Obama foi à TV dizer que algo precisava ser feito, que esse fenômeno não se repete tanto em outros países.
Desde os 21 alvejados por um atirador dentro de um McDonald’s em San Isidro em 1984, passando pelos 13 estudantes abatidos a tiros por dois colegas em uma escola de Columbine em 1999, foram 40 assassinatos em massa em 30 anos. Deixaram 362 vítimas fatais Obama tem motivos para se preocupar com tanto ódio racial, religioso ou genericamente social. O Brasil também.
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