segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Marcos Nobre: Resumo de Dilma e os idos de março

• É tempo de preparação para a grande turbulência

- Valor Econômico

Nem bem o impeachment esfriou e Dilma Rousseff já retomou a luta pela manutenção do lote que lhe restou no governo que entregou a Lula mês e meio atrás. Se Lula ataca Joaquim Levy, Dilma o defende. Se Lula ameaça colocar na praça uma reforma da Previdência, mesmo que minimalista, Dilma solta seu ministro Miguel Rossetto para enterrar a ideia. Se Lula quer a cabeça do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, Dilma faz de tudo para fortalecê-lo. Aliás, em uma dessas incríveis coincidências que só a política é capaz de produzir, a defesa de Dilma do feudo que lhe restou veio junto com uma operação de busca e apreensão nas empresas de um filho de Lula. E, por fim, lá da Sibéria da Pátria Educadora, Aloizio Mercadante está sempre a postos para voltar à cozinha do Palácio do Planalto da qual foi excluído. Todo o antigo núcleo duro de Dilma continua funcionando para resistir à tomada completa do governo por Lula.

Essa é uma das frentes de batalha de Dilma. A outra é o PMDB. Não é nada casual que a luta de Dilma para resistir à invasão lulista tenha coincidido com um novo afastamento do PMDB, explicitado no documento "Uma Ponte Para o Futuro". Foi, aliás, uma grande perda para o anedotário político que a versão final do documento tenha deixado de lado passagens preciosas de versões anteriores como, por exemplo: "é preciso que o PMDB passe a trilhar caminhos próprios, apartando-se, com elegância, do PT". Ficou perdida a elegância, que seria, de fato, inédita; o apartar-se não é exatamente novidade.

Ainda assim, mesmo que em campos distintos, interessa ao PMDB que Lula tenha o maior controle possível do governo Dilma. Essa é muito provavelmente a cara do mandato de Dilma até seu final, seja lá quando irá acabar: um governo emparedado por Lula, de um lado, e pelo PMDB, de outro. De ambos os lados, trata-se de reduzir a um mínimo a margem de ação de Dilma sobre seu próprio governo. O distintivo da situação é a total e completa ausência da oposição nessa estrutura de funcionamento. Simplesmente não conta como uma das forças de contenção de Dilma. O PMDB ocupou todo o espaço que, em uma democracia operante, deveria caber às forças adversárias ao governo. Essa é a verdadeira "ponte para o futuro".

Em uma estrutura assim, é realmente de se perguntar o que segurou e ainda segura Dilma no cargo. É certo que o destino não faltou à presidente, apesar de todos os tiros que deu no próprio pé. Mas, para além das circunstâncias, o sustentáculo fundamental foi e continua a ser a Operação Lava-Jato. Se Lula é fiador do governo, Dilma tem na Lava-Jato até aqui o seu seguro-mandato. Tendo a convicção profunda de que a devastação judicial não a alcançará, Dilma não apenas não faz nada para atrapalhar como só faz por lenha na fogueira. É seu principal instrumento para manter o espaço que ainda tem contra as investidas de Lula e do PMDB, já que o sistema político se mostrou estruturalmente comprometido com os esquemas ilícitos de financiamento de campanha e demais formas de corrupção. Também aqui a circunstância foi única: só mesmo uma completa outsider da política poderia ter permitido que o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal pudessem fazer seu trabalho como se espera que possam fazer.

Muito do sucesso da Lava-Jato se deve ao seu amplo e difuso apoio popular. Mas ele talvez não tivesse tido tempo de se formar e consolidar não fosse a feliz coincidência de uma presidente outsider que não tinha onde se apoiar para permanecer no cargo a não ser deixar a Operação revelar todo o seu potencial desorganizador do sistema político. No entanto, ao se escorar no poder desestabilizador da Lava-Jato para manter seu mandato, Dilma perdeu qualquer possibilidade de se recompor com esse mesmo sistema político. Barbeiragens governamentais são até aceitáveis, desde que não signifiquem a exclusão em massa de participantes do jogo político. Daí a última chance da presidente conseguir continuar à frente de seu governo ter sido a abdicação em favor de Lula. Mesmo que venha a ser muito avariado, o PMDB só faz acordo com o fiador, não mais com a locatária. Fica com os cargos, mas não ficará com o governo se Dilma resolver reassumir no lugar de Lula.

Só que o seguro de Dilma expira no momento em que a Lava-Jato tiver revelado a maior parte das figuras do álbum de excluídos do jogo político. Nesse momento, a escora mais importante de Dilma terá já chegado ao seu limite de utilização. Pelas contas de quem acompanha o ritmo inédito da Justiça na Operação, isso deve acontecer ali por março ou abril do ano que vem. E aí a renovação do seguro terá de se dar em novas bases. Para complicar as coisas, o calendário político e constitucional diz que março de 2016 será a última oportunidade para que as forças pró-impeachment deem a partida no processo. Será mais um período de grande turbulência e de desorganização.

É essa circunstância que pode explicar a decisão aparentemente desajeitada do governo de apresentar bem antes do fim do prazo a defesa contra o parecer do TCU que rejeitou suas contas. O prazo foi estabelecido por Renan Calheiros e deveria expirar na última semana deste mês. Se utilizasse todo o prazo concedido, o governo quase certamente jogaria para o próximo ano o exame das contas pelo Congresso. Só que, fazendo isso, colocaria uma vez mais o seu destino nas mãos do PMDB. A votação das contas coincidiria com a última chance da abertura de um processo de impeachment.

Pode ser que, no final, as contas acabem não sendo votadas. Mas o novo governo precisa passar por pelo menos um teste real dessa importância, já que dificilmente algo mais polêmico será aprovado ainda este ano. Agora que os cargos estão sendo efetivamente preenchidos, é preciso que os votos no Congresso sejam entregues, a neofidelidade do PMDB precisa ser testada antes da grande turbulência de março de 2016. Como só o PMDB é capaz de testar o PMDB, Lula e Dilma terão de deixar as diferenças de lado e unir forças nessa que é a mais difícil tarefa do momento atual.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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