- O Estado de S. Paulo
Com a chegada das festas natalinas de 2015, não são apenas os magistrados, os procuradores e os parlamentares que tiram as bermudas do armário e se paramentam para as férias que julgam merecidas, deixando o incêndio nacional para ser debelado só depois: as pessoas comuns também cessaram sua atividade política e entraram em recesso. Elas bem sabem que a situação é insustentável e precisa mudar, mas parecem inseguras quanto ao caminho a ser adotado. Segundo uma pesquisa do Instituto Datafolha divulgada na semana passada, 60% dos brasileiros concordam com a abertura do processo de impeachment. Ao mesmo tempo, para 58% dos mesmíssimos brasileiros, o vice Michel Temer faria um governo igual ou ainda mais sofrível do que o que aí está. Essa aparente ambiguidade não é bem uma indecisão ou um refugo da opinião pública. O sentido é mais sutil e mais desafiador.
Antes que os ideólogos de um lado e de outro se apressem a dizer que o povo é assim mesmo, que, mesmo ajoelhado aos pés do presépio, acende uma vela a Deus e outra ao diabo; antes que os propagandistas do aparato sindical amaldiçoem a classe média “conservadora” (para estes, a classe média só é boa quando vota no PT); antes que, no extremo oposto, os inconformados com as urnas de 2014 xinguem os petistas aos palavrões (como aquela meia dúzia de infelizes que insultou Chico Buarque, há poucos dias, no Leblon); talvez seja o caso de considerar outra hipótese. É possível que, em lugar de velas de macumba, o “recesso popular” esteja tentando acender uma luz de alerta e mandar um recado à Nação: devagar com o andor do impeachment, pois, se a titular é de barro, o vice é de areia.
A prudência intuitiva que vem das ruas esvaziadas é um cartão de Natal sem palavras. A mensagem é de cautela, ainda que a hora seja de urgências, ainda que o País não possa perder mais tempo além do que já foi perdido. Escutemos com atenção não mais “o ronco das ruas”, mas o seu silêncio. As multidões se recolheram, tanto no polo dos que são contra o impeachment quanto no polo dos que são a favor. Os que defendem a permanência do governo já não se mostram tão convictos, tão decididos. Os que querem derrubá-lo também não.
No polo dos defensores de Dilma Rousseff, é muito fácil de entender as razões do desalento. Ninguém menos que Lula já tinha avisado. No dia 29 de outubro, ele discursou para os membros do Diretório Nacional do PT: “Nós ganhamos as eleições com um discurso e, depois das eleições, nós tivemos de mudar o nosso discurso e fazer aquilo que a gente dizia que não ia fazer. Esse é um fato, esse é um fato conhecido de 204 milhões de habitantes e é um fato conhecido da nossa querida presidenta Dilma Rousseff”. Nessa confissão inequívoca de estelionato eleitoral, Lula sintetizou o péssimo estado de ânimo de suas fileiras, envergonhadas até a alma com o tamanho da mentira que pregaram no País. Não há demissão de Joaquim Levy que restaure o moral das bases. Nem os mais aguerridos defensores do mandato de Dilma são capazes de dizer que este governo é bom. Mesmo os que afirmam que o impeachment é “golpe” - numa retórica absurda, posto que o impeachment está previsto na Constituição e o processo avança em sintonia com as decisões do Supremo Tribunal Federal - são incapazes de esboçar uma defesa ainda que tímida do governo que aí está (isto é, do governo que não está nem aí - e em nenhum outro lugar). Todos eles sabem que do jeito que está não dá para continuar.
O problema está em como mudar. E em que direção mudar. É aí que entra o muxoxo do outro lado, daqueles que sonhavam com o impeachment como uma criança sonha com um brinquedo encomendado ao Papai Noel. O desejo de mudança era justo: tirar de cena um governo marcado por inépcia e por episódios apocalípticos de corrupção generalizada. A emenda, porém, começou a se revelar pior que o poder a ser deposto. O que parecia um enredo bonitinho, predestinado a um final feliz, foi se convertendo num filme de terror, a começar pelo aventureiro que lançou mão do papel de paladino do impeachment, Eduardo Cunha. Do ponto de vista da integridade, do decoro, da lisura, o presidente da Câmara simboliza tudo aquilo que precisa ser varrido de Brasília. Aí, quando saltou no meio do picadeiro e usurpou o papel de protagonista da investida contra o Planalto, deu-se o revés. Sua figura virou um fator de desmoralização dos que protestavam contra Dilma e contra o PT.
O outro fator foi o vice epistolar, Michel Temer. Seria ele o estadista capaz de tirar o Brasil do pântano? Ou da UTI? Michel Temer, que não consegue governar nem o PMDB que lhe cabe presidir, teria condições de salvar a Pátria? Quando esteve no exercício da Presidência, o vice também assinou decretos determinando créditos extraordinários (no valor de R$ 10,8 bilhões), contribuindo para ampliar as famigeradas pedaladas fiscais, agora invocadas como o principal “fundamento jurídico” do pedido de cassação. Ele nunca se insurgiu contra as “pedaladas”. Seria ele a saída? Nem os mais obstinados opositores do PT diriam que sim.
Foi então que as coisas confluíram para a trégua momentânea. Não se pense que ela indique covardia ou tibieza da gente brasileira. O seu sentido complexo está mais para o oposto. A trégua desencoraja os extremismos e lança um convite à razão. É Natal, a gente pensa. É tempo de paz. É a chance que temos de refletir com calma.
Sejamos francos: será que o argumento das “pedaladas fiscais” constituem realmente um fundamento jurídico para o impeachment? Sendo um argumento tão controvertido, tão problemático do ponto de vista formal, dará conta de unificar o País em torno de um novo pacto? Será que é mesmo por aí?
A resposta virá em 2016. Sejamos responsáveis - e esperançosos. Que as instituições decentes que nos restam e a boa-fé que ainda existe na cidadania iluminem o ano novo do Brasil.
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*Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP
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