Por Daniel Rittner – Valor Econômico
BRASÍLIA - Em um discurso cheio de referências à era petista, na cerimônia mais concorrida do governo interino desde a posse dos novos ministros no Palácio do Planalto, o chanceler José Serra deixou escancarada uma mudança de rumo no Itamaraty. Ele sinalizou que haverá um giro importante na diplomacia comercial, mas foi especialmente taxativo ao demarcar diferenças com a condução da política externa pelo PT.
"A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior", afirmou Serra, ao receber simbolicamente o cargo do ex-ministro Mauro Vieira, a quem agradeceu pela transição na pasta das Relações Exteriores. "A nossa política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido."
Serra frustrou a expectativa de parte da plateia, que já contava com o anúncio de troca em postos estratégicos do ministério, mas as indicações devem sair nos próximos dias. Ele quer Sérgio Amaral, que foi porta-voz e ministro do Desenvolvimento no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, à frente da embaixada do Brasil em Washington. O atual embaixador na China, Roberto Jaguaribe, deve ser nomeado para o comando da Agência Brasileira de Promoção das Exportações (Apex).
Além de seu antecessor, que rejeitou colocar o Itamaraty em defesa no exterior da retórica do "golpe" alinhavada pela presidente afastada Dilma Rousseff, Jaguaribe foi o único diplomata citado no discurso por Serra - o que dá uma amostra do grau de confiança nele. O texto do chanceler foi revisado "linha por linha" pelo presidente interino Michel Temer.
Enfatizando o respeito ao princípio de não ingerência em assuntos internos de outros países, o que foi interpretado como recado aos governos esquerdistas da América Latina que questionaram a legalidade do impeachment de Dilma, alertou: "Estaremos atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em qualquer país".
Na sexta-feira passada, Serra já havia cuidado pessoalmente da redação de duas notas que usavam termos pouco habituais na diplomacia para repudiar as "falsidades propagadas" por cinco países - Venezuela, Equador, Bolívia, Cuba e Nicarágua - e pelo secretário-geral da Unasul. Em sinal de inconformismo, o governo equatoriano chamou de volta ontem à noite seu embaixador em Brasília para consultas em Quito.
Foram várias referências do senador licenciado e ex-governador tucano a marcas registradas da gestão petista, como a cooperação Sul-Sul, que "chegou a ser praticada com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investimentos diplomáticos". Em contraste à abordagem recente nas relações com países africanos, que incluiu a abertura de embaixadas e consulados, ele sublinhou: "A África moderna não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico, tecnológico e de investimentos".
Feitas todas as ponderações e com diferenças devidamente demarcadas, Serra aproveitou a descrição de suas dez diretrizes da nova política externa para lançar mensagens relevantes.
Uma delas é renovar a aposta na parceria com a Argentina e no Mercosul, mas corrigindo o que precisa ser corrigido, "antes de mais nada o próprio livre comércio entre seus países-membros, que ainda deixa a desejar". Aproximar-se da Aliança do Pacífico e explorar complementariedade com o México são prioridades.
Na chefia de uma pasta turbinada com a Apex e mais poder decisório no comércio exterior, Serra fez uma crítica à estratégia "exclusiva e paralisadora" de ver a Rodada Doha como único foro adequado para corrigir distorções sistêmicas, como os subsídios à agricultura. É verdade que as negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) são o lugar adequado para fazer isso, conforme reconheceu Serra, mas a falta de avanços deixou o Brasil à margem da multiplicação de acordos bilaterais. "Precisamos e vamos vencer esse atraso e recuperar oportunidades perdidas."
O novo chanceler prometeu ainda esforços para concluir um tratado de livre comércio com a União Europeia e "soluções práticas de curto prazo" para remover barreiras não tarifárias impostas pelos Estados Unidos a produtos brasileiros. Mas advertiu: "É ilusório supor que acordos de livre comércio signifiquem necessariamente a ampliação automática e sustentada das exportações. Só há um fator que garante esse aumento de forma duradoura: o aumento constante da produtividade e da competitividade".
Finalmente, em uma referência à perda de prestígio do ministério nos cinco anos e quatro meses de Dilma no Planalto, Serra garantiu que fará esforços para tirar a diplomacia da penúria orçamentária deixada pela "irresponsabilidade fiscal" e comentou: "No governo do presidente Temer, o Itamaraty volta ao núcleo central do governo".
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