domingo, 26 de junho de 2016

E os juros? – Samuel Pessôa

- Folha de S. Paulo

Há duas semanas o governo enviou proposta de emenda constitucional (PEC) que limita o crescimento do gasto público não financeiro, conhecido por gasto primário, à inflação do ano anterior.

A PEC congela o gasto real do setor público por alguns anos.

Por que motivo a PEC não congelou o crescimento do gasto com pagamento de juros?

Dois motivos. Primeiro, como discuti na semana passada, o juro é o instrumento que temos para controlar a inflação. Redução dos juros sem que as condições permitam, como ocorreu de 2011 até o início de 2013, resulta em aceleração inflacionária.


Os outros instrumentos monetários para controlar a inflação, como compulsórios e outros controles ao crédito, são muito menos eficazes e/ou têm sido empregados em níveis muito elevados. Por exemplo, praticamos há décadas os maiores níveis (em comparação com a experiência internacional) de depósitos compulsórios dos bancos comerciais no Banco Central.

O segundo motivo para o fato de o gasto com juros não ser o foco da política de controle dos gastos é que uma política fiscal consistente controla automaticamente os gastos com juros.

A diferença essencial entre os gastos financeiros e o gasto primário é que este é fruto das escolhas da sociedade e do governo, enquanto aquele é determinado pelo mercado.

Explico-me: quando o setor público faz um concurso e oferece um contrato de trabalho a um futuro servidor público, há relação tênue entre este contrato e o equivalente no setor privado. Mais importante, como o contrato de trabalho de um servidor público evolui em razão de regras contratuais, após algum tempo estará ainda mais distante da realidade do mercado.

A mesma observação aplica-se aos gastos previdenciários, às pensões e aos gastos sociais em geral. São gastos em relações aos quais a legislação estabelece os critérios de elegibilidade e a evolução do valor do benefício.

É possível argumentar que há espaço para alterar o gasto primário por meio de melhora de gestão. O argumento parece-me fraco, pois mesmo o que entendemos no setor privado por melhora de gestão requer, no setor público, alteração da legislação.

Resumindo, o grosso do gasto primário é determinado pela legislação. Fortes ajustes fiscais requerem alteração das leis.

O gasto com juros tem lógica totalmente distinta. O ajuste fiscal produz redução do serviço da dívida pública por dois motivos. Primeiro, os juros da economia, em particular os pagos pela dívida pública, caem como consequência do ajuste fiscal. Adicionalmente o próprio ajuste fiscal reduz a dívida, o que também contribui para reduzir o seu serviço.

A redução do gasto primário causa queda do gasto financeiro. O contrário não ocorre. Em geral acontece o inverso: redução do gasto financeiro induz, por meio de escolhas do Congresso Nacional, aumento do gasto primário.

Ou seja, se o gasto primário não for contido, mesmo que fosse possível dar um calote na dívida pública, a inflação voltará forte. Com o calote, voltará ainda mais rapidamente, pois o Tesouro perde a capacidade de endividamento.

Finalmente vale lembrar que o serviço da dívida pública é o pagamento de um serviço que já foi prestado pelo setor privado ao setor público, diferentemente do gasto primário.

Agradeço a meu colega Marcos Lisboa os comentários e as sugestões nesta e na coluna passada.

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