domingo, 26 de junho de 2016

‘Está no livrinho?’ - Carlos Ayres Britto

- O Estado de S. Paulo

O genial brasileiro Tobias Barreto (1838-1889) era contundente com os pseudointelectuais que “se achavam”, falemos assim. Ia na jugular dos escritores que não se davam conta do mico em que habitualmente incidiam com suas análises e teorizações de fundo de quintal. Fruto de uma visão de mundo que não era senão a mais rasteira cumplicidade entre o provincianismo colonial brasileiro e os balofos privilégios da monarquia igualmente brasileira. Com o seu acabrunhante séquito de patriarcalismo, racismo, patrimonialismo, compadrio, nepotismo, fisiologismo, autoritarismo, soberba, cartorialismo e o tão renitente quanto ilícito enriquecimento privado à custa do erário.

Donde o conhecido trocadilho do padre Antônio Vieira (1608-1697): “Os governadores chegam pobres às Índias ricas e retornam ricos das Índias pobres”. Pois bem, Tobias sapecava em tais personagens o rótulo de “figuras caricatas”.


Encarnação do “baixo cômico”. Retrato não muito distante do que hoje é apelidado, já na esfera política nacional, de baixo clero parlamentar. Que, no entanto, cresceu nas últimas eleições e tem influenciado o desempenho dos governantes centrais do País. Vale dizer, Legislativo e Executivo mais e mais se têm inclinado a confundir presidencialismo de coalizão programática (válido mecanismo de governabilidade por aproximação ideológica de forças) com presidencialismo de cooptação fisiológica (espúrio mecanismo de governabilidade mercadológica ou pela troca de favores redutíveis a pecúnia e empoderamento pessoal).

Visão equivocada de exercício do poder, porquanto cumulativamente antiética e distanciada da voz ideológica das urnas. Ambas as instâncias estatais a tomar gosto no ofício de apenas representar que representam o povo. Espécie de feudal aparelhamento do Estado para a impudente festa (diria o poeta Castro Alves) do loteamento de ministérios de “porteiras fechadas” e do abocanho individual-parlamentar de dotações orçamentárias.

Este último adocicadamente chamado de “orçamento imperativo”, que outra majoritária destinação não costuma ter senão a de custear mal disfarçados quadros oficiosos de pessoal e organizações civis de questionável préstimo coletivo. Quando não “fantasmas”, no plano dos fatos.

É isso. É tal provinciana atmosfera mental de troca de favores pessoais e fidelização de viés partidário meramente utilitarista que habitua os agentes políticos do País a mal servir às respectivas instituições. Tanto quanto estas a desservir às respectivas finalidades. Modo de ser e de agir que tende a perpetuar um distorcido conceito social de governabilidade. Duplamente distorcido, porquanto contrário à vontade objetiva da Constituição e indutor de uma subjetiva resignação do povo quanto à impossibilidade popular de transformação das coisas. Donde a mais visível percepção de falta de unidade qualitativa na formação dos quadros ministeriais do Poder Executivo da União, nos últimos tempos, independentemente de quem esteja à testa desse Poder.

Mais nítida percepção de que os governantes centrais do País tendem a enxergar mais os bastidores do seu entorno partidário do que o céu aberto da sociedade civil. Com o que se expõem ao gravíssimo risco de deixar de ser pontes para se tornarem muros perante essa mesma sociedade.

A saída, no entanto, é fácil. Basta cumprir a Constituição! Basta comparar com a letra e o espírito da Lei Maior do País (modo metafórico de se falar do sentido e do significado de cada norma constitucional) tudo o que se pretenda fazer como governante mesmo! Das nomeações de auxiliares à formação de bases partidárias.

Do respeito à Lei Orçamentária Anual à Lei de Responsabilidade Fiscal. Das concretas políticas públicas às prioridades que para elas a Constituição mesma já estabelece, como sucede, por ilustração, com os setores do meio ambiente ecologicamente equilibrado e da educação e da saúde pública. Da proibição do preconceito contra determinados segmentos sociais às ações afirmativas do direito a reparação dos danos historicamente sofridos por eles. Da prossecução das políticas públicas de distribuição de renda aos economicamente débeis ao prestígio das instâncias estatais de cobrança de responsabilidades penais, civis e administrativas de quantos se encarreguem ou, então, ilicitamente se apropriem de bens, valores e dinheiros públicos. Sem jamais esquecer que toda a “ordem econômica” brasileira se lastreia em dois pilares constitucionais: a livre-iniciativa dos empresários e a valorização do trabalho humano (artigo 170). Trabalho de cujo “primado” a Constituição ainda dá conta como base da “Ordem Social” igualmente brasileira (artigo 193). Numa frase, basta otimizar em concreta funcionalidade poder e pudor, inclusão social e integração institucional ou comunitária. Tudo sob o império da mais ativada cidadania e plenitude da liberdade de expressão em sentido lato.

Uma comparação ainda me parece cabível. Assim como a mais inteligente forma de ser do indivíduo é trilhar sem nenhum desvio o caminho da honestidade, o modo mais inteligente de governar é seguir assim retilineamente a estrada da Constituição. O ser humano e todo governante a não temer jamais polícia, Ministério Público, Poder Judiciário, Tribunais de Contas, Receita Federal, imprensa, blogs, redes sociais, e por aí vai. Cônscios do dever cumprido e em paz com o seu travesseiro. O chefe do Poder Executivo tendo apenas de se perguntar se tudo o que vier a fazer “está no livrinho” a que se referia o presidente Eurico Gaspar Dutra. Chefe de governo e de Estado que esteve como inquilino do Palácio do Catete entre 1946 e 1950.

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* Carlos Ayres Britto É jurista, foi presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

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