Por Carolina Oms e Rosângela Bittar – Valor Econômico
BRASÍLIA - A Operação Lava-Jato terá o efeito de reordenar o sistema político, mesmo produzindo novos réus a cada dia. "Teremos que fazer aquilo que o marquês de Pombal falou depois do terremoto de Lisboa: enterrar os mortos e cuidar dos vivos", recomenda o ministro Gilmar Mendes, membro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Com a autoridade de quem comandará eleições em mais de 5 mil municípios daqui a três meses, com regras novas que devem provocar milhares de impugnações, ele defende uma reforma política que não seja apenas "discurso de domingo". Para Mendes, não há mais como conviver com 28 partidos representados na Câmara. Em entrevista ao Valor, o ministro elogiou o projeto do Congresso que limitaria a proliferação de legendas, mas foi barrado no STF, em uma decisão classificada por ele como "populismo judicial".
Eleição de 2016 será teste institucional, diz Gilmar
As instituições brasileiras vivem um momento grave de instabilidade e o país sofre uma crise múltipla, ao mesmo tempo em que convive com uma operação de investigação contínua, que cria novos réus a cada dia, e se prepara para eleições próximas em mais de 5 mil cidades. Para o ministro Gilmar Mendes, integrante do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a presença da Lava-Jato vai ajudar na reordenação do sistema político. "Teremos que fazer aquilo que o Marquês de Pombal falou depois do terremoto de Lisboa 'enterrar os mortos e cuidar dos vivos'.
Gilmar não nega que o Judiciário esteja desempenhando um papel excessivo, com interferência forte nas regras eleitorais e nos procedimentos do Congresso Nacional, mas defende que é preciso agir "calçando as sandálias da humildade". A reforma política é considerada necessária, mas "se transformou em um discurso de domingo". Condena as regras que permitiram a explosão do número de partidos - "algumas legendas poderiam estar inscritas na junta do comércio" - e anuncia uma ampla reunião, na quinta-feira, com os líderes partidários, para discutir as eleições e as novas regras de financiamento, que em sua opinião são "um convite à ilicitude".
A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:
• Valor: Está havendo risco, como nunca antes houve, de um colapso das instituições brasileiras com a confluência de múltiplas crises?
Gilmar Mendes: Vamos começar pela parte boa. Continuamos a viver uma era benfazeja. É o mais longo período de normalidade institucional, pelo menos no período republicano. São quase 30 anos desde a Constituição de 1988. Isso é um dado positivo, porque temos passado por momentos muito difíceis: impeachment do Collor, governo Sarney, inflação alta, episódios de corrupção, CPI dos anões do Orçamento, Itamar com todas as dificuldades. Conseguimos uma fase de sucesso com o Plano Real, com certa normalização, mas depois também com dificuldades econômicas. Aí vem mensalão e todos esses escândalos que se seguem, mas dentro de um quadro de normalidade. As instituições têm funcionado.
• Valor: Que quadro de normalidade?
Gilmar: O país desenvolveu-se nesses anos, cresceu, modernizou-se, em suma, teve avanços. Conseguiu reformar a própria constituição que era exótica, se a gente considerar o estatismo e tudo mais. Conseguimos aprovar uma Lei de Responsabilidade Fiscal, que é o termômetro para dizer que foi feito coisa errada agora, para as discussões sobre pedaladas ou empréstimos indevidos. Claro que, neste contexto, sobressaem as instituições. Num dado momento, por exemplo, se a gente olhar a Comissão Parlamentar de Inquérito Collor-PC o Congresso teve um papel importantíssimo. Era uma outra composição, um outro contexto, havia ainda aquele tal Congresso de cardeais, aquelas figuras que representavam. O Judiciário tinha um papel menos pró-ativo, o Congresso teve um papel mais decisivo. E o Executivo chafurdado em uma grande crise. Nas fases subsequentes, com o mensalão, era o Congresso numa fase de gravíssimo comprometimento. Se fala em repasse de dinheiro para parlamentares. Dentro desse contexto, o Congresso não tem como se sobrelevar e começa aí um papel muito mais forte do Judiciário. Há também sério comprometimento do Executivo. Mas as coisas foram tratadas dentro de marcos institucionais, significa dizer, aplica-se o Código Penal.
• Valor: O senhor acha que em um momento como esse é natural um protagonismo do Supremo?
Gilmar: Sim, do Judiciário, e o Supremo obviamente traduz um pouco isso. O tribunal supre um pouco faltas do sistema como um todo, no interesse da preservação da institucionalidade. Só que esse período se alongou, veio o mensalão, esse quadro se projetou no tempo, com o recebimento da denúncia e depois o próprio julgamento, com todos os desgastes que isso representou, e agora, ao fim e ao cabo, essa tragédia que é a Lava-Jato-petrolão. Que repete mais do mesmo, se a gente for olhar, pelo que se revela. A rigor, ontologicamente, não há como diferenciar mensalão de petrolão, quem fez um, quem fez o outro, até eles são simultâneos. Só que o petrolão é muito mais sofisticado, completo, holístico. E, de novo, contamina o Executivo de maneira completa e contamina o Legislativo de maneira completa e de novo se impõe ao Judiciário um papel, até de resgate.
• Valor: Então voltamos ao protagonismo do Judiciário.
Gilmar: Não por desejo ou por projeto, mas pelas circunstâncias e tendo em vista a preservação da institucionalidade. Mas isso tornas as coisas muito difíceis, porque o Judiciário tem que agir, mas ao mesmo tempo, calçar as sandálias da humildade. Saber que há limites para o seu fazer. Aqui tem muitas explicações. Nós tergiversamos no 'fazimento' de reformas. Como foi muito ambicioso e detalhista, o processo constitucional exigia um processo de reformas. De alguma forma, o presidente Fernando Henrique Cardoso fez isso e, no início, também o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se preocupou com isso. Por exemplo, a reforma política se transformou num discurso de domingo, de segunda a sábado a gente trabalha contra a reforma e no domingo a gente faz o discurso a favor. Esse ponto restou intangível. O modelo que nós temos de eleição proporcional de lista aberta nós temos desde 1932. Nós tinhamos uma certa limitação do número de partidos, o Congresso até tentou delimitar. Mas aí houve um erro do Supremo, que derrubou a cláusula de barreira, com a ideia de que estava asfixiando os partidos. O Congresso tinha feito algo bem cuidado. Nós derrubamos, talvez até por falta de senso prático, depois de a medida já estar em vigor com um prazo de dez anos para os partidos se adaptarem.
"O Judiciário tem que agir, mas, ao mesmo tempo, calçar as sandálias da humildade. Saber que há limites"
• Valor: O Supremo não pode voltar atrás?
Gilmar: Não pode porque deitou no chão a reforma. Foi uma decisão infeliz. Com o advento do lulo-petismo no poder, houve estímulo para a criação de novos partidos. E nós [o Supremo] demos a deixa, porque dissemos que não era infidelidade partidária se fosse para criar um novo partido. Todo mundo saiu para criar e esses partidos viraram verdadeiras legendas de aluguel. Algumas legendas poderiam estar inscritas na junta do comércio. Tornou-se mais difícil a governabilidade, mas o governo gostava disso porque negociava com cada qual.
• Valor: Quando o político não consegue negociar sua candidatura dentro do partido, criava outro.
Gilmar: Nós não criamos democracia partidária e nisso a justiça eleitoral tem responsabilidade. A maioria dos partidos tem até hoje diretório provisório, estamos tentando encerrar isso agora com uma resolução do TSE. Os partidos mais antigos continuam com diretórios provisórios. Isso significa que o diretório é dono do partido e que ele designa os seus acólitos. A lógica é fazer adeptos no partido para substituir aquele dirigente. Mas qual o ânimo de fazê-lo se o sujeito esta entronizado naquela função? Democracia partidária zero. Então nós falseamos o sistema, criamos um modelo monárquico oligárquico nos partidos e isso impossibilita quaisquer passos de reforma. Por exemplo, voto em lista, tem muita gente a favor e muitos países fazem isso. Mas isso significa que quem o partido colocar nas primeiras posições será eleito. Se o partido sequer faz eleição interna, não preciso apontar como vai ocorrer essa escolha.
• Valor: Mas o Judiciário continua interferindo de maneira desorganizadora. Agora não vai ter financiamento empresarial de campanha, mas as regras continuam obscuras.
Gilmar: A intervenção do Judiciário muitas vezes é necessária, mas ela precisa se dar quando se torna inevitável. Quando a gente esquece de calçar as sandálias da humildade a gente comete erros graves, como eu considero essa intervenção do Supremo. Antes de definir o financiamento privado, ou público, de pessoas físicas ou não, a gente precisaria ter definido qual o sistema eleitoral. Nós colocamos o carro na frente dos bois. Quem propôs a ação estava defendendo interesses eleitorais do PT, que queria se livrar da mensagem de ser uma legenda corrupta e para obter o voto em lista - que é fácil com o financiamento público. Ministros cansados de escândalos de corrupção, mas sem base na Constituição..., é uma decisão espiritual, voluntarismo puro. Populismo judicial.
• Valor: E quando o Congresso foi mexer, com a minirreforma eleitoral...
Gilmar: Agravou. Há agora limites de gastos, com a aplicação de um redutor de 30% nos gastos da eleição passada. Por exemplo, na campanha de agora, em 82% dos municípios o limite é R$ 100 mil para prefeito e R$ 10 mil para vereador. Eu brinco que essa é a campanha mais ecológica que a gente terá, com R$ 10 mil o vereador não paga nem gasolina. A gente sai do oito para o oitenta e cai no irrealismo, com dificuldade de fiscalizar. Isso pode ser um convite para o financiamento ilícito. Temos um quadro preocupante em um momento delicado em que a política está sob suspeita de toda índole.
• Valor: Se o processo de impeachment no Senado demorar mais que 180 dias, a Dilma volta e desfaz tudo que o governo interino fez. Novamente foi o Supremo que organizou o rito atual.
Gilmar: Nós tivemos aquela sessão na quinta-feira que antecedeu a votação do impeachment na câmara, que teve momentos caricatos, em que discutimos se a votação era de Norte a Sul e tinha que ter um equilibrio. Ora, a disputa era a presidente ter mais de um terço e impedir o processo. Chegou um momento em que eu tive que dizer com toda a clareza que nós estávamos discutindo um problema que não podíamos resolver, que era a falta de votos dela. Começasse de onde fosse, o resultado é que ela teve 137 votos.
• Valor: A reforma feita pelo Congresso também deu 40 dias a menos para o registro de candidaturas no TSE. Essa mudança trará risco ainda maior de eleger políticos ficha suja?
Gilmar: Essa é uma das preocupações. Os candidatos vão conseguir registro ou uma liminar e vão disputar eleição. A judicialização vai ser muito intensa, com essas acusações de abuso de poder econômico, tendo em vista esses limites. Então, proclama-se um resultado e ele vai se tornando provisório. Além disso, anulada a eleição, agora se fará outra e não se empossa o segundo colocado. E, no caso de vereadores, vai ter um impacto grande. Para eleição proporcional, você pega o número de votos válidos e divide pelo número de vagas. Se você anula parte dos votos válidos, você muda o coeficiente eleitoral e altera os eleitos.
• Valor: O que o TSE pode fazer?
Gilmar: Nós demos um prazo para que se encerre este absurdo dos diretórios provisórios. Mas sobre a reforma, nesta quinta [amanhã] vou conversar com os líderes dos partidos no Congresso, para que a gente aponte problemas e tenha um diálogo franco.
"Esse modelo de exigir o trânsito em julgado de forma radical é uma jabuticaba. Só existe no Brasil"
• Valor: O que seria uma reforma eleitoral mínima urgente?
Gilmar: Primeiro, o fim das coligações eleitorais, que falseia todo o resultado. A coligação é um partido provisório, só para a eleição e fortalece esse modelo de aluguel e de partidos com um só representante. Também temos que discutir o sistema eleitoral. Se será misto, distrital, proporcional, ou seja lá o que for. O que é evidente que não dá mais é ter governabilidade com os 28 partidos no Congresso Nacional. Com a decisão do Supremo sobre o fim do financiamento empresarial, o fundo partidário cresceu de R$ 120 milhões para mais de R$ 800 milhões e a base do cálculo para divisão é o número de parlamentares. Então estamos agora com o caso do Partido da Mulher Brasileira (PMB), que inicialmente não tinha mulher, e que conseguiu 22 parlamentares, por alguns dias, de passagem, só para a fundação, e agora conta com dois parlamentares. Então estamos com um contencioso aberto para definir tempo de TV e fundo partidário. Calcula-se pelo número da fundação ou atual? Cada parlamentar é um ativo hoje.
• Valor: A Lava-Jato está atingindo todos os partidos. Como ter certeza que o financiamento não foi propina, se quem doou diz que foi?
Gilmar: É preciso fazer algum tipo de ressalva e de seleção. É claro que está havendo um pouco de generalização. Temos doações normais que podem estar sendo chamadas de propina.
• Valor: A presença da Operação Lava-Jato vai impedir que a política se organize?
Gilmar: Eu tenho a impressão que a Lava-Jato ajuda a fazer uma reordenação, inclusive do sistema político. Certamente teremos ainda duas ou três delações bombásticas. Vai chegar um momento em que, na esfera político-institucional, teremos que fazer aquilo que Pombal falou depois do terremoto de Lisboa. "Precisamos enterrar os mortos e cuidar dos vivos". É fuga para a frente, precisamos criar um consenso básico em termos de reforma. O que é possível fazer? Estabilizado o governo, se faz uma agenda comum.
• Valor: Mas como as investigações continuam avançando, não se sabe ainda quem são os mortos ou os vivos.
Gilmar: Em algum momento vai se saber. Acho que já se começa a desenhar. Tem aquele abraço do afogado, aquele que quer puxar todos. Não é o caso, evidentemente. Propina a um deputado da oposição não faz muito sentido como propina.
• Valor: Mas e se o delator disse que fez repasses de propina?
Gilmar: Tem que se verificar. A delação é apenas um elemento inicial, que tem que se verificar a consistência ou não. Muitas coisas o Supremo já desqualificou. Vamos pensar na guerra fria, qual a lógica de um americano passar dinheiro para fortalecer os russos? Tem que se tomar cuidado porque daqui a pouco o prêmio que oferece na delação vira uma grande loteria, daqui a pouco o sujeito passa a ser premiado por ter praticado crimes graves. Mas isso é um aprendizado, não podemos dizer que a delação não deu bons resultados.
• Valor: O Supremo ainda deve discutir mais uma vez, no segundo semestre, a possibilidade de prender a partir de uma condenação já na segunda instância - um assunto que está em foco também por causa da Operação Lava-Jato.
Gilmar: Não só. Eu mesmo havia votado, em 2009, no sentido de entender a exigência do trânsito em julgado, depois eu passei a sinalizar, em casos menores, que nós precisaríamos rever. Esse modelo de exigir o trânsito em julgado de forma radical é uma jabuticaba - só existe no Brasil. Você caminha no primeiro grau, segundo grau, etc. e aí isso passa para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e depois vai ao Supremo. Nós temos casos que ficaram recorrendo no Supremo dez anos. Isso leva à prescrição, à impunidade e tudo mais. Esses casos dos recursos protelatórios são réus ricos e advogados bem pagos para essa finalidade. Ah, mas o Supremo poderia ter antídotos. Mas não tem. O sujeito entra com embargos de declaração e aquilo cai na vala comum. Não faz sentido, ninguém está litigando para obter a revisão do julgado. No caso do Supremo, não vem com recurso, vem com habeas corpus. A mim me parece razoável estabelecer limites.
• Valor: A defesa ainda teria como garantir os direitos do réu mesmo com a mudança?
Gilmar: No mundo todo é assim. Não vamos sair do argumento de presunção de inocência. Uma coisa é o sujeito que nunca praticou crime. Outra coisa é o indiciado, outra coisa é condenado, o condenado pela segunda vez, é como se você fosse enfraquecendo a presunção de inocência. Não posso colocar essas pessoas como se fossem iguais. Vocês conhecem o caso do jornalista Pimenta Neves, que era réu confesso e ficou 20 anos solto, mais de dez anos no Supremo. Conseguiu mudar o resultado? Não. Nem era esse o propósito.
• Valor: As eleições municipais, com uma enxurrada de impugnações, financiamento ilegítimo e tudo o mais, serão um salve-se quem puder?
Gilmar: Eu acho que é um grande experimento institucional, um teste. E daí vamos sair com conclusões, inclusive, para a reforma política que virá depois. Nós estamos, na medida do possível, fazendo um grande esforço para aprimorar a prestação de contas. Já temos condição de fazer cruzamentos com bancos de dados, criamos um pequeno setor de inteligência, em que está nos ajudando o Banco Central, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Tribunal de Contas da União (TCU), Receita Federal e Polícia Federal, então vamos estar atentos a possíveis abusos. Mas não vamos também fingir que o problema não existe.
• Valor: O Supremo muitas vezes é acusado de demorar a julgar casos de corrupção envolvendo políticos.
Gilmar: Nós não somos vocacionados, isso temos que reconhecer, para decidir matéria penal neste volume. Mais tarde teremos que discutir o foro, alguma solução teremos que encontrar.
• Valor: Ainda existem chances de julgar o pedido de cassação da chapa da presidente afastada Dilma Rousseff neste ano?
Gilmar: Acho que a instrução termina no segundo semestre e, a partir daí a gente vê o que vai acontecer.
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