- Valor Econômico
• Apenas dedução com saúde e educação custa R$ 16,2 bilhões
A vigência do teto de gastos federais a partir de 2017 obrigará a sociedade brasileira a debater as prioridades do orçamento público. Já ficou claro, principalmente depois de depoimentos de especialistas insuspeitos em políticas sociais como Ricardo Paes de Barros e Fernando Resende, que o teto não afetará negativamente as despesas com educação e saúde, uma vez que a emenda constitucional aprovada assegura a esses itens do orçamento proteção mínima - correção anual pela inflação, além do "congelamento" dos valores em patamares superiores (1% do PIB) aos determinados pela Constituição.
É sabido também que, se não houver ganhos de eficiência no gasto público como um todo daqui em diante, inclusive nas áreas de educação e saúde, haverá deterioração contínua dos serviços prestados à sociedade. O que significa dizer que o que já é ruim em muitos casos - ou na maioria - pode ficar péssimo. O debate da eficiência, portanto, terá que tomar lugar rapidamente. E o primeiro a se preocupar com o tema devem ser os funcionários públicos porque, como determina a emenda constitucional, diante do não cumprimento do teto, os gestores, como primeira medida punitiva, não poderão reajustar os salários dos servidores.
Paralelamente ao debate sobre eficiência do gasto, será travado outro de relevância similar: a que setores da sociedade brasileira o Estado deve destinar prioritariamente seus escassos recursos?
O orçamento federal, bem como os estaduais e municipais, está recheado de exemplos de gastos e renúncias tributárias que, no fundo, concentram renda, transferindo-a do público para o privado. O que se vê é um orçamento loteado por grupos de interesse organizados, com representantes no Congresso, cada qual defendendo a ferro e fogo seu naco na destinação do dinheiro público. O resultado é conhecido: o Brasil tem uma sociedade altamente estratificada, com um Estado incapaz de igualar as oportunidades de seus cidadãos.
Tome-se a chamada tabela progressiva do Imposto de Renda (IR) da pessoa física. As alíquotas são de fato progressivas porque incidem de acordo com a renda do contribuinte. Ocorre que uma jabuticaba, criada para fazer um agrado na classe média ainda nos tempos da ditadura militar, institucionalizou uma injustiça atroz: o direito de dedução dos gastos com saúde e educação. Num país cuja Constituição instituiu o direito universal à saúde e à educação, a concessão do benefício não faz o menor sentido.
Se o filho de um cidadão brasileiro rico padece de uma doença grave, que, para ser tratada, seu pai ou responsável precisa desembolsar R$ 10 mil, o chefe da família tem direito a uma devolução de R$ 2.750,00 do gasto realizado. Isso ocorre porque, na tabela progressiva, o chefe da família é taxado pela alíquota de 27,5%. Se o filho de um brasileiro de baixa renda sofre da mesma doença, muito provavelmente seu pai descobrirá que não há tratamento no SUS (Sistema Único de Saúde) e, por isso, terá que levantar os recursos de alguma forma, talvez, vendendo seu automóvel velho ou até mesmo o imóvel onde a família reside.
O cidadão de baixa renda não paga Imposto de Renda porque ganha menos de R$ 1.903,98 por mês (ou R$ 22.847,76 por ano). Ele está na faixa isenta do recolhimento do imposto. Mas o fato é que ele teve que se virar em dez para conseguir os R$ 10 mil necessários ao tratamento da doença num hospital particular. A este cidadão a Receita Federal não devolverá um centavo porque, afinal, ele é isento do Imposto de Renda. A pergunta que fica é a seguinte: isso é justo?
As deduções - feitas por quem possui plano de saúde privado - de gastos com saúde no Imposto de Renda somam hoje R$ 12,1 bilhões por ano. É quase metade do que o governo desembolsa com o elogiado programa Bolsa Família, que atende a 50 milhões de pessoas. Na prática, o que essa dedução faz é transferir R$ 12,1 bilhões da saúde pública para a particular. Num país com os níveis de miséria como os do Brasil, a possibilidade de dedução das despesas com saúde é um anacronismo que precisa ser revisto, especialmente à luz da criação de um teto que impedirá que as despesas federais tenham aumento real durante 20 anos.
O mesmo raciocínio vale para a dedução das despesas com educação. Neste caso, a dedução é limitada a R$ 3.561,50 por dependente, ao contrário dos gastos com saúde, em que o valor dedutível é ilimitado. As deduções com educação custam R$ 4,1 bilhões à União. Novamente: o que o benefício faz é transferir dinheiro da educação pública para a privada, uma vez que apenas as famílias que podem matricular seus filhos em escolas pagas têm direito à devolução.
Há inúmeros outros casos de benefícios tributários na legislação brasileira que, ao fim e ao cabo, concentram renda nas mãos de poucos, em detrimento da maioria silenciosa - quando era secretário da Receita Federal (1995-2002), Everardo Maciel costumava dizer que todas as classes da sociedade brasileira estão representadas em Brasília (leia-se, no orçamento), menos a mais numerosa: a dos miseráveis, justamente aquela a que as políticas públicas deveriam atender com prioridade. "Estes não têm sindicato, porta-voz, partido, nada. É por isso que os benefícios não são desenhados para eles", dizia Everardo.
Nilson Teixeira, economista-chefe do banco Credit Suisse, estima que o governo federal deixe de arrecadar R$ 89 bilhões (cerca de 1,37% do PIB) com benefícios tributários que não se justificam. Além dos R$ 16,2 bilhões das deduções com saúde e educação da classe média, o Tesouro Nacional abre mão de arrecadar: R$ 6,1 bilhões do Imposto de Renda dos aposentados com mais de 65 anos; R$ 5,1 bilhões do IR das empresas que pagam planos de saúde para seus funcionários; R$ 1 bilhão do IR das companhias que gastam com o PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador); R$ 1,1 bilhão por causa da alíquota zero de Cofins e PIS na importação de gás natural líquido; e R$ 60 bilhões referentes a isenções e deduções de contribuições para a previdência social.
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