- O Estado de S. Paulo
• Decisões como a de Carmén Lúcia criam forte insegurança jurídica
De boas intenções está cheio o inferno. No Brasil, o conhecido ditado aplica-se como em poucas partes do mundo, dada a tentação populista que se espraia por todos os Poderes públicos e chega ao Judiciário.
Um exemplo recente, muito preocupante, veio da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, que concedeu duas liminares impedindo que a União bloqueasse um total de R$ 374 milhões de recursos do Estado do Rio. O bloqueio seria a execução de contragarantias em contratos que tiveram cláusulas descumpridas pelo Rio.
A ministra Cármen provavelmente seria aplaudida na Cinelândia ou no Largo da Carioca, onde funcionários públicos enfurecidos fizeram manifestações contra o pacote de austeridade do governo fluminense. Ela justificou sua decisão pela impossibilidade de o Estado cumprir deveres constitucionais, entre os quais o de pagar servidores e aposentados que, de fato, estão recebendo a conta-gotas o que lhes é devido, quando recebem. A ministra também mencionou a continuidade da execução de políticas públicas e a prestação de serviços essenciais à coletividade.
O fato, porém, é que a decisão abre um precedente perigoso, que é o de Estados e municípios não arcarem com as consequências da sua irresponsabilidade fiscal, e simplesmente deixarem de pagar o que devem, alegando que não podem atrasar salários e benefícios previdenciários e deixar de prestar serviços essenciais.
Do ponto de vista legal, evidentemente, as contragarantias estão inscritas em contratos firmados dentro da lei, e decisões como a de Cármen Lúcia criam forte insegurança jurídica, aquele ingrediente venenoso que paralisa decisões de investimento e prejudica o desenvolvimento econômico.
No governo, aliás, a preocupação com as liminares da presidente do Supremo é maior, por exemplo, do que com a retirada pela Câmara das contrapartidas estaduais do Regime de Recuperação Fiscal dos Estados. A “bondade” irresponsável dos deputados já era esperada, mas a decisão de Cármen Lúcia pegou a equipe econômica desprevenida.
Dois malefícios principais podem advir das liminares da presidente do Supremo, caso sua posição seja confirmada pelo plenário do STF. O primeiro é o risco de que o mesmo princípio que impediu o bloqueio de recursos do Estado do Rio agora seja aplicado para a dívida renegociada dos Estados com a União, destruindo a mais importante peça da restauração fiscal do País a partir do final da década de 90.
A partir de agora, e gradativamente até julho de 2018, os Estados retomam os pagamentos da dívida, de acordo com a carência estendida na negociação do ano passado. E se os governos estaduais decidirem não pagar, para que não faltem recursos para funcionários e aposentados? O Supremo vai impedir o bloqueio de recursos?
No governo, não se crê que o STF chegue a esse extremo, já que nos últimos tempos o tribunal tem se mostrado sensível à questão fiscal. Ainda assim, as liminares de Cármen Lúcia criam insegurança em relação ao bloqueio pela União de recursos dos Estados, um mecanismo crucial da frágil arquitetura fiscal brasileira. É pouco provável que ocorra, mas os mais paranoicos ganharam uma razão para temer que vá tudo pelos ares.
O segundo potencial malefício da decisão da presidente do Supremo é criar um efeito colateral extremamente danoso para os próprios Estados que pretende defender. Estes hoje praticamente só têm acesso a crédito de bancos públicos e instituições multilaterais, e mesmo assim com aval da União. Se, a depender da decisão do colegiado do Supremo, o governo federal perceber que as garantias são apenas para inglês ver, naturalmente o precioso aval será dado com muito mais parcimônia, reduzindo o volume de empréstimos que os Estados poderão tomar, e também o número de Estados que terão acesso a qualquer crédito. Populismo não é a solução.
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