A questão não é se proclamar marxista ou gramsciano, mas sim valorizar as categorias e a perspectiva filosófica e ético-política de Marx e Gramsci – dois gigantes do pensamento crítico moderno – para dialogar com o mundo contemporâneo e refinar o discurso teórico. Mais importante que reiterar convicções é manter viva a chama da inquietação intelectual e continuar em busca da renovação teórica, tarefa que tipifica as melhores tradições críticas.
Essa a mensagem que se pode extrair do denso livro de Giuseppe Vacca, um marxista que se dedica há décadas a fazer avançar a análise dos processos que organizam e revolucionam o mundo em que vivemos. Vacca não deseja repisar o terreno em que floresceram as ideias de Gramsci e seu profícuo diálogo com Marx, nem defender a validade e a atualidade da teoria gramsciana e do próprio marxismo. Tudo isso está, para ele, pressuposto.
Seu propósito é indicar como o marxismo de Gramsci soube estabelecer uma riquíssima relação com o marxismo de Marx e com os maiores teóricos de sua época, instituindo uma sólida zona de interpelação da modernidade capitalista. A agenda teórica de Gramsci, organizada nos anos do cárcere mas não só, recobre todos os pontos nevrálgicos do processo de estabelecimento e reformulação da modernidade capitalista para expor sua contraditoriedade, os eixos que lhe dão sustentação e as molas que podem levar à sua superação. Partindo de uma análise dialética da economia capitalista como base organizacional do sistema, Gramsci vai além das articulações explosivas entre estrutura e superestrutura para descobrir como se formam e atuam as vontades coletivas. Com isso, abre-se por inteiro à consideração da práxis política: do Estado, dos partidos, da organização e, sobretudo, da hegemonia, perspectiva que dará extraordinária originalidade a seu marxismo.
Cresce assim em Gramsci, passo a passo, a compreensão de que parte ponderável do problema da revolução não estava na conquista do poder político, mas na criação de uma dinâmica cultural e de um tipo de intelectual que garantissem a coerência entre um programa econômico, um projeto político e um sistema de valores, implicando assim claramente a esfera complexa do simbólico.
Política como luta de hegemonias, em suma. Para o que seriam necessárias formas específicas de organização que, tal como um “príncipe moderno”, ajudassem a agregar intelectuais dispostos a “traduzir” as linguagens teóricas e alimentar uma nova subjetividade política. Em vez, portanto, de concentração voluntarista na “ação”, um esforço para fazer valer a unidade entre teoria e prática, elaborando categorias analíticas que contenham em si desdobramentos de caráter estratégico. No léxico de Gramsci, isso significaria dar vida à “filosofia da práxis”.
No momento atual, em que os espasmos da modernidade capitalista disseminam incerteza e medo pelo mundo, pondo em xeque sistemas políticos e problematizando a democracia, o livro de Vacca funciona como um balão de oxigênio. Mostra, com habilidade e rigor, como a proposta teórica gramsciana, nascida em meio às lutas das primeiras décadas do século XX, estruturou-se de forma tão original que chega ao século XXI como recurso indispensável para a compreensão da modernidade capitalista que temos diante dos olhos.
*Marco Aurélio Nogueira é professor de teoria política da Unesp
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