- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Um dos grandes problemas da sociedade contemporânea é o das populações sobrantes, as que não conseguem emprego permanente ou que não têm acesso aos direitos sociais supostamente garantidos a todos, as que não têm acesso aos benefícios da Previdência Social ou não o terão senão tardiamente, as que não têm onde morar, não têm terra para plantar, não têm acesso à assistência médica e hospitalar que lhes garanta a duração da vida no que a vida deve durar. As que morrem de doenças paras as quais há remédio e cura. Gente cujos carecimentos são descabidos.
Temos, também, os descabimentos: em cidades como São Paulo, em que há tanta gente que passa fome, cujo lixo, porém, contém desperdícios alimentares suficientes para alimentar outra cidade do mesmo tamanho. Cidades em que animais de estimação já têm assistência médica que gente ainda não tem.
Vivemos numa era de insuficiências programadas, apoiadas em técnicas econômicas e técnicas políticas de gestação de carências lucrativas. O conhecimento científico de que dispomos permite conhecer previamente no que vão dar certas medidas e certas decisões. O caso brasileiro é claramente do tipo em que os agentes políticos dos problemas que temos sabem perfeitamente que esta sociedade é baseada na igualdade jurídica, que justamente faz de alguns mais iguais do que os muitos que são menos iguais, como diz George Orwell, em sua fábula sobre uma fazenda dominada pelos porcos.
A economia política da insuficiência, em países como o Brasil, decorre do contínuo revigoramento e modernização de técnicas de acumulação de capital derivadas do rentismo pré-capitalista, de quando a riqueza se baseava na renda da terra, que é exatamente o oposto do capital. A renda fundiária é tributo que o proprietário cobra de quem da terra precisa para trabalhar e viver, o que é possível porque a terra é um bem finito. Ele recebe pagamento pelo monopólio de um pedaço do planeta. Mesmo quando é um proprietário capitalista e produtivo, e não raro pequeno proprietário, embute no preço de seus produtos a parcela correspondente ao tributo da renda fundiária.
Essa mentalidade é no Brasil transplantada para outros setores econômicos. É uma questão cultural, coisa de um empresariado em que muitos têm o capital, mas não conhecem a cultura capitalista, o que dela é próprio.
Aqui as coisas e os serviços tendem a ser artificialmente insuficientes, menos do que o necessário a que todos se saciem. A consciência infeliz do nosso tempo é produto deliberado de insuficiências manipuladas para gerar o ser característico e necessário ao funcionamento do sistema, o sobrante. "Não há vaga" na porta de uma fábrica diz a quem bate com o nariz na porta que é uma pessoa além do necessário. No hospital lotado e sem vagas para novos enfermos, diz que é uma pessoa além da vida a que deveria ter direito.
A compreensão dos problemas sociais brasileiros depende de que se compreenda os mecanismos que continuamente e cada vez mais expulsam das relações sociais estáveis parcelas crescentes da população. Estáveis são aquelas relações que justificam e motivam as pessoas a sentirem-se felizes porque por meio delas sabem que fazem parte da sociedade. As relações que lhes asseguram o trabalho e os meios para viver, comer, morar, sustentar a família, ouvir uma música de Ivan Vilela ou de Bach, ler um livro de Renata Pallottini ou de Mafra Carbonieri. Autores do encontro entre o pequeno mundo da vida cotidiana e o grande mundo da cultura. O encontro que nos liberta das banalidades e da vulgaridade. É isso que nos inclui, e não apenas as meras três refeições por dia do discurso populista.
Alguns invertem a ordem lógica da história política para fazerem de conta que são estadistas lúcidos e competentes. Governam em nome do ontem, e não em nome de hoje e do amanhã, governam para vingar a infelicidade dos que já morreram e que não lhes delegaram o mandato da vingança. Um presidente da República, durante oito anos, encheu o vazio da política com o mantra "Nunca antes neste país...". Governou em nome dos mortos.
No entanto, se apurarmos o olhar, veremos que as categorias de sobrantes se multiplicam. Sobrantes diz muito mais e de modo mais apropriado do que excluídos, designação fácil e superficial sem validade explicativa. Uma categoria de sobrantes é a dos que já trabalhavam quando ainda não tinham acesso aos direitos trabalhistas. A lei dizia que não podiam trabalhar porque ainda crianças. Mas a lei fechava os olhos quando, para sobreviver, ingressavam no que os recenseamentos chamam de população economicamente ativa. Essa é apenas uma lasca na cruz da nossa existência, uma ruga a mais em nossa face cansada.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto), dentre outros.
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