- Folha de S. Paulo
Há forte resistência sobretudo entre partidos de esquerda à reforma da Previdência. Mas perderam o timing: ela deveria ter ocorrido em 2003. A bem da verdade, ela ocorreu de forma localizada: os parlamentares do PT que se opuseram à reforma foram expulsos do partido e criaram o PSOL.
A reforma da Previdência de 2003 (PEC 41/2003) foi a única, desde 1988, que não foi meramente paramétrica, mas estrutural. As reformas paramétricas envolvem apenas mudanças nos parâmetros do sistema: requisitos de idade, tempo de exercício no cargo, elegibilidades etc. Reformas estruturais, em contraste, envolvem mudanças mais gerais: a cobertura do regime, seu caráter público ou privado (e o lugar da previdência complementar privada), o regime de contribuição (se com contribuição ou benefício definido), a forma de financiamento (capitalização versus repartição) etc.
A PEC 41/2003 teve impacto estrutural: estipulou que os novos servidores públicos não teriam mais aposentadoria integral. Para esses, a reforma previa inicialmente o teto do INSS como valor máximo de aposentadoria. Quem quisesse ganhar mais teria de contribuir com os fundos de previdência complementar (em regime de contribuição definida). Quanto menor o teto, maior o mercado de fundos previdenciários. Mesmo as entidades públicas podem contratar agentes privados para gerenciar o sistema. Demorou nove anos até que o Funpresp fosse regulamentado.
A reforma de 2003 também completou a reforma paramétrica de FHC, que ficara incompleta. A taxação de servidores inativos, julgada inconstitucional pelo STF, por exemplo, foi reapresentada e aprovada. Idem idade mínima para servidores.
O que é paradoxal é que essa reforma foi aprovada por um governo que a combatera acirradamente. Analistas diversos como Rodrik, Cukierman e Tommasi chamaram atenção para esse fato estilizado e seu argumento passou a ser conhecido como "Why it takes a Nixon to go to China?" ("Por que só um Nixon pode ir a China?"). A lógica é: só um anticomunista "durão" ("hawk") como Nixon pode iniciar uma abertura para a China sem ser acusado de estar capitulando ou transigindo com o adversário. Da mesma forma, presidentes de esquerda podem aprovar reformas pró-mercado (setores de esquerda dirão "se vem deles, deve fazer sentido" e ele contará com os votos da esquerda e da direita).
De fato, Lula contou com o apoio massivo do PSDB para aprovar a reforma. O preço político de reformas desse tipo vem depois e são muito maiores que a defecção de correligionários. Elas contribuíram para o desgaste do PT enquanto "marca partidária". E mais: a incongruência promessas vs. políticas torna a política ininteligível e cínica para os eleitores.
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Marcus André Melo, doutor pela Sussex University, é professor titular de ciência política da UFPE
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