- Valor Econômico
A força do funcionalismo nas decisões de Estado
Quando o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a Medida Provisória 805, ele reforçou o caráter concentrador de renda da política fiscal brasileira. A MP adia para 2019 o reajuste dos servidores do Executivo federal previsto para janeiro de 2018; e eleva de 11% para 14% a contribuição previdenciária dos funcionários públicos ativos e aposentados que ganham acima de R$ 5,3 mil.
O acordo salarial negociado pela então presidente Dilma Rousseff e assinado no ano passado pelo presidente Michel Temer previa o pagamento do reajuste em três parcelas em janeiro de 2017, de 2018 e de 2019. Em outubro, ao ficar claro que não haveria como pagar essa conta em 2018, evidenciando o erro de cálculo do governo, Temer editou a medida que representa uma economia de R$ 4,4 bilhões com reajustes salariais e uma receita de R$ 2,2 bilhões com ao aumento da contribuição, totalizando, assim, um impacto de R$ 6,6 bilhões no orçamento do próximo ano.
A decisão liminar de Lewandowski ainda será analisada pelo plenário do STF. O governo avisou que vai recorrer, mas é importante que ela seja analisada sob um aspecto que o ministro do STF talvez não tenha pensado: o da desigualdade de renda no país.
O ministro argumentou: "Não se mostra razoável suspender um reajuste de vencimentos que, até cerca de um ano atrás, foi enfaticamente defendido por dois ministros de Estado e pelo próprio presidente da República como necessário e adequado, sobretudo porque não atentaria contra o equilíbrio fiscal".
Ignorando a dimensão da crise fiscal do Estado brasileiro, que também foi subestimada pelo governo, Lewandowski concluiu que a MP viola jurisprudência do STF que garante a irredutibilidade dos salários. Sem o aumento, alegou ele, "os servidores atingidos iniciarão o ano de 2018 recebendo menos do que percebiam no anterior, inviabilizando qualquer planejamento orçamentário familiar previamente estabelecido". Afirmou que o STF já decidiu que "alíquotas progressivas para a contribuição previdenciária de servidores públicos ofende a vedação do estabelecimento de tributo com efeito confiscatório".
A liminar de Lewandowski, concedida em atendimento a uma ação do PSOL, é um exemplo da despreocupação com decisões que perpetuam a iniquidade da política fiscal do país. Ela não só beneficia o funcionalismo público, que é parte dos 20% mais ricos da população, como desconhece que os trabalhadores do setor privado não raro perdem salário real, nominal ou o próprio emprego quando a empresa tem que se ajustar.
Em parecer enviado ao Supremo, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, uniu-se ao coro do funcionalismo e também recomendou a anulação da MP, sob o argumento de que reduz o salário dos servidores federais.
É fato que a medida era alvo de ações nas instâncias inferiores e a justiça vinha suspendendo os seus efeitos para algumas categorias, como delegados da Polícia Federal de São Paulo e auditores da Receita.
Antes de tomarem decisões tão importantes, porém, é útil que juízes, procuradores e ministros do STF leiam um estudo feito por economistas do Ministério da Fazenda, intitulado "Efeitos Redistributivos da Política Fiscal no Brasil".
Lá está dito que a carga tributária de 33% do PIB - bem acima da média de 22% do PIB na América Latina - e a forte expansão do gasto público, que gerou um déficit primário de 2,5% do PIB e um déficit nominal de 9% do PIB, não foram capazes de reduzir a distância entre ricos e pobres, que faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.
Os 20% mais ricos da população brasileira abocanham 48,5% das transferências monetárias do orçamento público para as famílias. Os 20% mais pobres ficam com apenas 4,8%. O sistema tributário no Brasil é "levemente progressivo", mas a redistribuição dos recursos arrecadados é bastante concentradora de renda, com exceção do Bolsa Família.
Apesar das transferências (aposentadorias, pensões, Loas, seguro desemprego, abono, salário família e Bolsa Família) representarem 23% da renda dos domicílios brasileiros, percentual superior aos 21% da renda dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o Estado brasileiro é um Robin Hood às avessas. Ele não tributa os ricos para distribuir aos pobres, mas tributa a todos para distribuir para a metade mais rica da população, em especial sob a forma de aposentadorias e pensões.
O documento traz essas e outras constatações sobre o baixo impacto do aumento do gasto público na redução da desigualdade e compara os resultados com os de outros países.
Em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, as transferências às famílias somaram pouco mais de R$ 700 bilhões (12% do PIB). Do total, impressionantes 83% (ou 10% do PIB) corresponderam ao pagamento de aposentadorias e pensões. Para se ter uma medida de comparação, a despesa com educação foi de 5,8% do PIB, e, com saúde, 4,5% do PIB na mesma data.
O perfil distributivo no país, portanto, reflete a incidência dos rendimentos de aposentadoria e pensão, cuja parcela apropriada pelos 20% mais ricos é cerca de 53%. Isso mostra que os altos gastos com a Previdência no país reproduzem a desigualdade observada na distribuição da renda. O Bolsa Família, ao contrário, é um programa progressivo: 70% do gasto beneficia os 40% mais pobres.
Na União Europeia, as transferências representam 70% da renda disponível dos 10% mais pobres. No Brasil, ela corresponde a 30%. Lá as aposentadorias e pensões respondem por cerca de 50% do total de transferências. No Brasil, é mais de 80%.
Há muito o que fazer para diminuir a desigualdade no país. Os impostos podem ser mais progressivos, a reforma da Previdência é inadiável e os gastos públicos devem focar os mais pobres. Mas as decisões dos três Poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - não podem ser pautadas pelos interesses sindicais nem perenizar a desigualdade.
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